segunda-feira, 1 de março de 2010

Na Avenida, na Guerra!

Era uma noite fria. E longa.
De cacimbo. Final de Junho. Do século passado.
Da varanda do 3º C, da avenida, viam-se as balas tracejantes, iluminando os céus. Apenas. Como estrelas cadentes.
Nem tiros de pistola. Nem rajadas de metralhadora.Nem a sonoridade gélida e terrífica dos rockets, destruindo tudo.
Pairava no ar, um cheiro acre. A morte.
E o silêncio despertava os vivos. Petrificava-os . Ali, na varanda do 3º C, da avenida.
Os Movimentos Armados, estavam recolhidos nos seus quartéis. Tão perto, que lhes advinhava o arfar do peito.
Anunciaram na rádio, com voz grave, dramática, que os Hospitais da Avenida seriam evacuados.
Destes, restaria apenas o esqueleto agarrado ao espaço.
Noticiaram, como se fosse a última noite. A derradeira noite da avenida.
O último gesto.
E este, tardava, apesar da hora tardia.
Enquanto isso, os camiões apinhados de corpos, amontoados indiscriminadamente, sem chapa identificativa, no tornozelo, rodavam na estrada. Rumo ao desconhecido, das famílias.
A vala comum, sem funeral, nem flores, nem missas, nem lágrimas, nem lutos...
As tracejantes, continuavam traçando no céu, o destino dos hospitais da avenida.
Para outra. Na cidade calma e ainda segura. Entre a Baixa e a Samba.
Ali onde apenas os sinais da guerra, mas não o cenário real, imediato e mortífero dessa guerra, entre irmãos.
Esta não galgara o centro asfaltado, ainda...
Os falsos profetas diziam tempos antes, que se a guerra chegasse ao asfalto, a cidade estaria perdida...
Do alto do 3º C, a noite agonizava nos nossos olhos e também a cidade e a avenida.
Olhando outros 3ºs Cs, da frente, vizinhos, vislumbrava-se os mesmos medos, as iguais angústias, a mesma espera.
Ouviu-se finalmente o som da coluna militar.
Indescritível...
Sem pressa, num protocolo militarizado e rigoroso, os carros rolavam no asfalto.
Ambulâncias, autocarros, jipes, carrinhas,unimogues, alternando-se na coluna.
Médicos, enfermeiros, doentes,militares, motoristas, bombeiros, integrando esta fila.
Os militares, das Forças Armadas Portuguesas, apenas. Armados, imóveis, como estátuas.
Num silêncio avassalador.
As varandas da avenida, enlutaram-se. Arrancaram os gritos e as lágrimas à matéria e quedaram-se num óbito antecipado. Carpindo no silêncio.
Cresceu a impotência e também a coragem.
O século chegou ao fim e a guerra também.
Os hospitais retomaram a sua função. Voltaram moradores daquelas varandas.
Tudo se apaziguou.
Porém, duvido, que no mundo dos vivos, haja um sobrevivente a este episódio traumatizante de guerra, que apagasse da memória e dos sentidos, aquela noite gélida, tétrica e lúgubre.
Hoje, a avenida está bonita, de rosto lavado, de bem com o muceque e o asfalto. Evoluindo, crescendo.
Em cada 3º C, advinho a história dessa noite e de todas as outras e como assim se fez a História.

1 comentário:

anónimo disse...

Não sei o que escrever. Um beijo.