quarta-feira, 26 de novembro de 2014

hoje, filha, da melhor mãe do mundo

Ela era linda. 
Doce, simples, pacífica.
Qualquer pessoa que para ela olhasse, que com ela convivesse rapidamente percebia a pureza, a beleza interior do seu ser. 
Nunca a ouvi julgar o seu semelhante. Tão pouco enfurecer-se. 

Tinha a lágrima sempre à mão e o sorriso no olhar. A voz oscilava consoante as emoções.
Amava serenamente como serena era, desde que se levantava até que se deitava. 
Ela era uma jóia rara. Um exemplo de mulher, filha e mãe. De cunhada, nora e tia. De vizinha. 
Ela era aquele ser humano que qualquer um queria para o seu aconchego. A paz que cada um de nós precisa na sua vida. O porto seguro. 
Por ela o mundo seria Amor. Praticava-o a cada segundo da sua vida. Por ela não vinha mal ao mundo. Este ficou a dever-lhe quase tudo.
Ela era a minha mãe. Que cedo partiu para a eternidade, depois de muito ter sofrido. Apenas com cinquenta e três anos.
Ela era a melhor pessoa do mundo. E não sou só eu, sua filha mais velha, que o afirmo. E sinto. 
Hoje faria setenta e nove anos.
Por ela, tento todos os dias ser o mais próximo do que ela representava. Um ser singular. De excepção. Não consigo. Porém não desisto, porque ela me ensinou que a vida não é fácil mas é possível. E pode ser maravilhosa. E cada um de nós deve perseguir o que de melhor possui. A capacidade para ser feliz.
Enquanto a minha memória e o meu coração te recordarem, minha mãe, serás eterna em mim. 
Obrigada por teres nascido. E teres sido a minha mãe.

como o dia

Puxei uma manta. Cor de rosa, coral . A alegrar-me a tarde. Não alegra.
Tapei os meus arrepios. Aos meus pés, dona Pitanga. Só por acaso nesse lugar. A aproveitar a manta. O lugar dela raramente é tão rasteiro. Esse lugar está guardado para os males menores. Fantasmas. Ameaços. E ratos de sacristia. Inclui os dos dois géneros.
No lugar do coração estão bouquets de rosas que não recebi, mas semeei. Beijos por dar e sois que arrecadei. À espera de melhores dias.
No lugar da mente está um dia, quem sabe quando, cheio de brilho e paz. Confiança e verdade. Por viver. E ontens onde não me sentei.
Chove. E acinzenta-se tudo à minha volta. É o canal Q, tentando sorrisos que não dou. É o Harry Nilsson, cantando Without You com a mesma voz sofrida de há quarenta anos, que me arrancava lágrimas castigadoras e suspiros idiotas e me fazia cantar num inglês mais do que perfeito toda a letra que aprendi primorosamente só para mais sofrer e chorar. Quase desfalecer. Ao som desse choradinho feito de flechas nos corações das meninas tristemente pirosas que se punham a jeito dos estúpidos rapazes desse tempo, de todos os tempos, porque os rapazes são sempre estúpidos ( salvo seja ).
O silêncio em mim, na casa, à volta, a janela recebendo os pingos da chuva, a luz indirecta, os livros fechados, as estórias adiadas, os fins ignorados, tudo se juntou para conspirar contra o meu sossego. A favor da minha falta de paciência.
Um desafio para passear, cancelado, por um problema de saúde que se arrasta e me rouba a liberdade de ir por aí fora, uma mala por fazer e algumas contrariedades, me fazem pensar que há dias que só fora de casa se levam. Se despacham. E não se pensa mais nisso.
Desde que haja galochas, que não tenho, gabardine, que deixei esquecida numa esplanada de Paris, em Julho, chapéu de chuva, ( qual o pobre que não o leva por engano duma chapeleira, assim como quem não quer a coisa ) e disposição ( será que estou com ela? Não sei, não ) tudo está alinhado para desanuviar os pensamentos, erguer a cabeça, arrebitar o nariz, sacudir a poeira e fazer uma cruz. Que por acaso hoje até é dia de euromilhões.
Acendi a luz do candeeiro para ver melhor porque já se faz noite em mim.
Não fosse eu um espírito a quem ordenaram que fosse forte e brincaria com as fragilidades das palavras que me bailam à frente da memória e do presente e hoje seria dia, um daqueles que a gente sabe que é o dia certo, o tal, de mandar tudo para as urtigas, beber uns copos ( ai a minha colite que late que nem cão raivoso ), fumar um charro ( nunca é tarde ) ou cortar os pulsos.
Toca o telefone. Fixo. Aquele que passa mais tempo na gaveta da cómoda da entrada do que no suporte. Hoje, está com sorte, porque dona Pitanga friorenta como é, escolheu estar aos meus pés, aquecida pela maciez da manta rosa coral.
Atendo. São os tipos da NOS. Às vezes qualquer sacana desconhecido me salva os pensamentos nefastos, provocados pelas minhas alucinações e por este mundo sacana e conhecido que me põe como o tempo. Cinzento, tempestivo, feroz. Para esquecer. Ou lembrar, antes que se faça tarde.
Adio os propósitos. Que sou cão que ladra mas não morde. E vou fazer um chá. Só que a colite mo deixe beber sem sobressaltos...

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

sonhadora

Arranco a culpa
Arranco a ferida
Rasgo a dor
De nada e tudo doer
A alma triste e perdida
Mas não o fogo d' um amor
Por nascer
Arranco a dúvida
E a desculpa
A solidão
Arranco até o coração
Só não arranco a tua presença no meu ser...
Nem a noite que o segredo calou
Nem a chama
Nem a esperança
Que no tudo mergulhou
Respiro-me livre
Profundamente
Respirando-te 
Na minha mente
E na Inspiração
Sonho que és tão somente
Ah...louca sonhadora...
Não mais que, a minha respiração.

m.c.s.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

voar

De alma cheia
E leveza no olhar
Me banhei de sol e luz 
Pelos caminhos 
Que a corrente persegue até ao mar
Purificada
Às asas d' um albatroz juntei
Linhas paralelas 
Outras perpendiculares 
Que desenhei
Cruzei os céus
E pintei
De cores singelas
E movimentos circulares
Estrelas
E brilhei...
E sonhei
Pelas mãos de um anjo voar
E voei
Daqui, até ao luar.

m.c.s.

anoitece na cidade

Anoitece na cidade... 
Olho a chuva que cai, teimosa lá fora. O vento que sopra nas árvores. O monte que se enegrece. 
É um tempo de mudança. De despedidas e perdas. De desesperança.
Não fora dias de sol e muitas luas, flores, beijos e abraços, encontros e repastos e outonava-me na concha antiga que se bem abriga, melhor isola e castiga.
E acrescenta cansaço e dor à vida.
Anoitece na cidade... 
Na penumbra desta sala há um silêncio secreto. Consentido e merecido. Como um hino mudo, às leis da natureza. E às suas forças. Que não se cumpriu.
Um sol posto que não se viu. Um carinho que não se sentiu. Uma emoção que não arrepiou. Uma estrela cadente que não me encantou. Um frio que de mim se apoderou. 
Há um acordo mental fazendo fé na palavra que rompe os silêncios e ecoa no espírito em mudança.
Há uma gata dormindo no sofá de que ganhou a posse. 
Uma música melancólica fazendo jus à presença nova do tempo que em outono se transformou.
Há a preguiça e a displicência travando o instinto e a vontade.
Há a nostalgia d' outros dias, outros montes, serras e rios. Outras fontes.
Há a saudade de ti. 
Anoitece na cidade.
Foi um dia que já partiu abraçado à noite que chegou. Neste Novembro que feliz se instalou.
Não fora o cenário que me envolveu e protegeu e seria pouco mais que uma réstia de nada. Assim sou tudo.
Anoitece na cidade...


a lágrima

Fria,
Mais fria que o gelo gelado da incompreensão
Salgada,
Ainda mais que as águas do mar, na sua imensidão
Pesada,
Mais que os ombros vergados ao peso da solidão
A lágrima...
Formosa
Transparente
Audaciosa
Como uma bola de neve, resvala, se apaga, mas rola
E queima
E marca a nossa história
E deixa chagas na memória...

m.c.s.

não digas nada

Não digas nada
Não quebres o silêncio das vogais
Palavras que ficaram por dizer
Que eu quero dançar
A melodia do olhar
Que ao coração me há-de prender
Não digas nada
Sente a nota musical
Ao toque da minha mão
Há uma prece no ar
Harmónica, celestial 
Em secreta união
Não digas nada
Que o tempo fala por nós
E o som da sua voz
Tacteia, sussurra e soletra
E numa festa desperta
Hinos de entrega e doação
Que inspiram e rodopiam 
Tocando a minha emoção
Não digas nada... 

m.c.s.

existência


Há uma insónia a cada madrugada 
Que não dorme
Na minha vontade de te pensar
Há uma música, 
Uma dança, 
Um desejo depois, de te abraçar
Há um beijo
Dois, três
Há a ousadia, 
O pecado a seduzir
A transgressão
A desafiar a razão
Em que me perdi
Há um pôr de sol e o mar
Há até o ensejo de te amar...
Quando o sol traz uma esperança de ti
Sorrio
Simplesmente...
Depois, penduro o sol na minha manhã
E sorrio à ideia de não chover amanhã
Há já na memória
Um capítulo bonito da história...
m.c.s.

regressar


" Ó camponesa formosa...vem clarear-me a tristeza,,. vem clarear-me a tristeza com a luz do teu olhar...mostra-me o trilho florido, que ao teu afecto conduz, dá-me o teu abraço, a morada, dá-me o teu abraço, a morada, sou um ceguinho sem luz..."
Ainda a melodia, ainda a morna ouvida quando deitei as emoções no leito antigo, ainda o dia levando-me para os braços da noite avançada nas horas. Ainda o sono. O coração adocicado. O frio. O pijama de inverno. As botas de lã. As fotografias antigas. Álbuns de uma vida vivida. Ainda o aconchego. A adrenalina que disparou. Ainda a casa de morada de família, reclamando por mim. As boas-vindas, os objectos. As fotografias. Álbuns de vidas minha e dos meus entes mais queridos. O seu cheiro. Falando-me palavras de aconchego e amor. Sorrindo-me. Como uma mãe saudosa e amiga....
Tudo me envolveu e embalou. E adormeci em paz, como uma menina, acabada de ganhar o melhor presente do mundo, envolta em sentimentos puros. A boca sabendo a mel, os olhos, botões de rosas, o coração feliz.
Um tiro, dois, três...abri os olhos. Como se aqui tivesse permanecido. Como se fosse todos os dias quinta-feira e os caçadores andassem por aí correndo atrás da caça que o Vale do Alvorão não esconde. Reconheci os sons. Levantei-me e abri as janelas. Uma a uma. Para entrarem os sons dos miúdos no átrio da escola. Dos automóveis passando de quando em vez. Das persianas subindo nas casas dos vizinhos. 
Para entrar o cheiro da manhã ainda envolta em nevoeiro. Inspirei profundamente. Olhei a serra. Com olhos de presente. O hoje oferecendo-me emoções de filho pródigo. E senti uma felicidade incomparável. Porque única. De liberdade visceral.
Regressar...nove meses depois. Assim como se fosse simples e fácil. Não é.
Deixei trinta e sete anos para trás e pus pés ao caminho. Tinha de o fazer. Foi o meu desejo ao longo de todas estas décadas. Afinal, regressar era imperioso. Era voltar a mim. 
Estou feliz porque voltei ao fim de uma gestação noutro lugar. Vim parir a esperança de me ter de novo encontrado. Sem receio, ressentimento ou culpa. De peito aberto.
Não mais estarei longe desta cidade e da sensação de estar em casa. 
Não mais estarei longe do que fui porque já não tenho medo. Só agora percebo.


reflectindo

A felicidade é um instante. Aquele momento em que Deus nos olha e nós não desviamos o olhar.

m.c.s.

Luanda em dia de festejos da Dipanda - 11 de Novembro de 2014