segunda-feira, 15 de julho de 2013

nem sempre fechada a sete chaves


Há uma criança em cada um de nós. Diz o lugar comum. Aquele onde me encontro perdidamente adulta mais vezes do que desejaria. E de onde me escapo se tenho uma aberta, para brincar de polícias e ladrões ou jogar à macaca marcada no chão de terra batida.
Onde finjo de adulta, vestido de festa, sapatos de salto, bâton encarnado. Perfume caro. E uso a etiqueta atrapalhadamente. E como de boca fechada, de faca e garfo. 
E falo baixo e coloco o guardanapo no colo. 
Onde distribuo sorrisos que não chegam a gargalhadas que guardo para os putos da rua. 
Se me oferecem presente. Se me fazem surpresa boa. Se me chamam, das Dores. Se me contam anedota picante ou a última partida no irmão mais velho. Ou no chefe. Se é amigo do peito. Só porque sim, que a vida se leva a rir e a brincar...
Diz que há uma criança dentro de nós. Quem diz? O lugar comum. Que é aquele onde o mundo se encontra. Se acha e se perde para recomeçar e desanimar. E se obrigar.
Nos preconceitos e regras. Nos planos e obrigações. Nos rituais e seduções. Nas caras fechadas, corações duros, almas penadas. Vidas roubadas. 
Onde me reconheço. Onde desobedeço. Na negação de me fardar, de me etiquetar. De me sonambular. 
Onde me recuso a crescer, que dor de crescimento doi para chuchu. Tem chorar e sofrer. Tem pânico e pesadelo. Tem sair e não voltar, tem perder e pagar. Tem justo e pecador. Tem remar, remar. Tem naufragar. Tem morrer e virar poeira.
Há dias que a criança que há em nós acorda radiante, rebelde e traquina. Transforma-se num milhão. Vai para a roda, dá-se as mãos, e em coro canta e dança. Se alegra e não reclama. 
Salta o muro. Vai para a rua. Corre descalça, parece gazela, provocadora, gritando para os candengues, uôoooooooo! O último a chegar mãe dele é m'bica. 
Deixa de brincar ao toca e foge e avança no dia e no quintal do vizinho. Caçumbula maçãs da índia. Sobe na mangueira lá de casa. Pendura-se nas raízes da mulemba e se balança. Chama a caçula da lavadeira Alice e grita: Empurra Sebastiana, empurra. 
E sobem as duas à vez, sobem no ar nem precisam de asas para voar. Nem tapetes voadores. Nem sonhos.
Há dias que fica em pé na sala da 4ª e canta, caranguejo não é peixe, caranguejo, peixe é, caranguejo só é peixe quando entra na maré. E brinca de professora no galinheiro da mãe. E engana o baleizeiro com moeda que não vale. E corre atrás do carro do fumo e se avermelha, engasgada e chora de faz de conta. E vai alugar uma xica na oficina do Arlindo. E salta à corda. E come maboque da quitandeira que passa.
Vai para o colo da mãe e pede uma estória.
Abraça o cansaço e adormece feliz. E sonha com a kianda que falam está a aparecer na cacimba do bairro indígena. E com as salinas de quadrados salgados, onde o avô gosta de passear. E com bonecas, cipaios, balões da feira, papagaios, arco-íris e Natal.
Há uma criança em cada um de nós. Nem sempre fechada a sete chaves. Crédula, pura. Bonita e feliz. 
Eu alimento-a. Quando aparece. Quando quase morta a chamo, para me ressuscitar. E faço a promessa.
É esse lugar da memória que vive no meu espírito rebelde e travesso que guardo p'ra mim preciosamente, que quero conservar. Que quero validar. Onde quero sempre morar. 

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