Abro a gaveta . Do armário da cozinha. Preciso de um espeto de madeira para com ele retirar uma torrada que ficou presa na grelha da torradeira. Dou-lhe pouco uso. À torradeira e também aos espetos. Agora.
A memória fotográfica diz que deve haver um ou mais espetos na gaveta. Tinha sempre. Faziam-se espetadas com frequência cá em casa. Nesta casa.
Sorrio à visão d' um pacote de espetos, por encetar, novinhos a estrear. Na verdade não faço espetadas há mais de seis anos. Como sei? Sei e pronto.
Abro a portinhola do velho bar do móvel antigo, tão antigo que lhe perdi o conto. É lá que guardo isqueiros de um tempo em que se fumava à séria cá em casa.
Avisto cigarrilhas e charutos que nunca fumarei. Entre as garrafas de licor, ofertas recentes, uma garrafa de uísque velho, meia cheia. Não evito um esgar. Não bebo álcool. Faz tanto tempo que aqui está que deve saber a tintura. Por mim aqui vai continuar.
Abro a porta da despensa. Preciso d' um botão. Estão alguns na caixa de costura. Que apinhada com as outras caixas sobressai pela cor encarnada, na prateleira forrada a papel claro. Há pouco tempo esta despensa foi arrumada. E tudo ficou nos seus lugares. Muito mais fácil ficou encontrar agulhas no palheiro. Por falar em agulhas, descubro o botão. E latas de tinta. E graxa castanha e preta. E frascos de cola. E cola sólida. E a pistola da cola. E chaves de fenda. E parafusos. E um sem número de engenhocas que nunca soube para que serviam.
Há um mundo silencioso, abandonado nestas paredes alinhadas e ocupadas de coisas votadas às traças. Não resisto a uma interjeição que me enche de som a boca, até aqui, calada.
Há um mundo silencioso, abandonado nestas paredes alinhadas e ocupadas de coisas votadas às traças. Não resisto a uma interjeição que me enche de som a boca, até aqui, calada.
Macacos me mordam! Estou na posse de utensílios que não fazem falta pois que a sua posse nunca foi reclamada.
Fecho gavetas e portas. Tranco lembranças que me estriparam, viraram do avesso, sugaram-me a pele e doparam-me a alma.
Sento-me no sofá da sala. A casa quieta e silenciosa, enorme, limpa e harmoniosa descansa das guerras, mentiras, traições e abandonos. Depois de arrancados corações, escondidos cinzeiros, arrumadas as fotografias de família, trocadas almofadas, mudados móveis e candeeiros, tudo depositado na gaveta do esquecimento e da conformação, como finalmente a torrada. Vou acender depois o piloto do esquentador e pregar o botão que me caiu das calças. Nego-me a fazer espetadas e não fumarei charutos ou cigarrilhas, não brindo com uísque, não faço furos nas paredes nem penduro quadros. Porém tudo isto me pertence por usocapião. Ainda que não lhe dê uso. Pode ser que um dia destes, calhe.
Na vida quando parece que perdemos, vamos a ver e ganhamos.
Ó p'ra mim cheia de espetos, material de bricolage, charutos e cigarrilhas, bebidas alcoólicas para dar e vender.
Ó p' ra mim protagonista de uma estória que não é de encantar mas que já não me desencanta mais. Depois de todas as gavetas aberta e fechadas.
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