Família a gente não escolhe, os amigos sim, diz a sabedoria popular.
Apetece-me discordar. Na verdade, família a gente não escolhe. Avós, pais, irmãos, tios, primos, sobrinhos. Mas sogros, cunhados e por aí adiante, a gente não escolhe, só escolhe o marido e logo vêm atrás todos os apêndices que saltam fora quando caem de podres.
Quanto aos amigos, a gente se tem aqueles de infância também não escolheu. Não escolhe. Eles caem-nos na sopa mesmo se não gostamos de sopa. Fazem-se na idade em que as crianças gostam de toda a gente que os trata bem. Fazem-se na idade do colégio.
Das brincadeiras ao pé de casa, no bairro. Se são filhos de amigos do pai, da mãe. Ou até parentes de vizinhos.
Era aqui que queria chegar. Desta vez não rodeei muito porque isto é tudo tão transparente que não dá para muitas flores a enfeitar caminhos.
Quando a gente tem vizinhos de quem gosta como irmã, como filha ou afilhada, conhece todas as pessoas que lhes são próximas.
E conhece também os parentes candengues. Foi assim que conheci a pessoa que me faz escrever hoje.
Tínhamos nove anos e tornámo-nos amigas. E depois colegas de liceu. E depois amigas íntimas, do peito, como irmãs. Kambas para a vida, mesmo se a vida nos separou por continentes. Quis o destino e ela que a sua profissão a trouxesse a mim, com frequência e ao longo de 38 anos que completo hoje de permanência neste país.
Mas eu não vivia na capital nem nos arredores. Estive sempre a 100 kms da cidade grande e durante alguns anos apenas nos víamos nos aniversários, se ela ia a Torres Novas, ou se eu arranjava tempo e dinheiro para mais uma deslocação a Lisboa em tempo de estadia dela na cidade, que fora das férias, era de um ou dois dias. Nos últimos 11 anos, com as minhas crias em Lisboa a estudarem passei a vir a Lisboa todos os fins de semana e em período de férias e os nossos encontros passaram também a ser mais assíduos. Morámos perto uma da outra por aqui e tudo ficou mais fácil.
Muito por causa da minha mudança de vida afectiva, fiquei mais disponível para todos. Fui a Luanda 3 vezes, a primeira das quais porque ela me ofereceu o bilhete a meias com outra amiga de infância e fiquei na sua casa. Nesses períodos estivemos juntas dia e noite e foi assim o culminar da nossa amizade pela aproximação física entre nós e com a terra. Porque eu nunca tinha estado tão feliz. Também porque a idade e a experiência de vida é outra.
Reformei-me em Março último. Vim para o Olival Basto em Abril. Ela, a kamba diami ( minha amiga ) veio para Lisboa para ser operada a um joelho. E ficámos quase vizinhas. E voltámos a ficar unha e carne fisicamente. E passámos os aniversários de uma e de outra, juntas, passámos a operação, o internamento, a fisioterapia, os sábados e domingos, o centro comercial, almoços, jantares, compras, passeios, feiras, horas a perder de vista em casa, horas a perder de vista ao telefone e na internet.
Mas a vida dela não é esta. Está lá, em Luanda. E hoje, daqui a pouco, parte para a nossa terra.
E custa. E doi. E vou ficar mais só. Muito mais só. E parece estou a perder o meu braço direito. Sei como é que é isso. Já me aconteceu na vida. Também com alguém que embora tivesse escolhido, se transformou em família, tal como com ela.
Uma amiga de 49 anos não é uma amiga qualquer. É como uma irmã gémea. Não se questiona. Não se põe em causa. Não se pensa nos quês nem porquês. Acontece na vida da gente, apenas e só. E conserva-se. E ama-se. Muito.
Faz hoje 38 anos foi a última pessoa de quem me despedi antes de partir de Luanda. Dando-lhe um abraço maior do que o universo. Também hoje mais uma de tantas vezes, me despedi dela. Vai voltar em breve. Para mais uns dias. E voltará sempre.
Também será kunanga. Também será técnica superior do lazer dentro em breve, como ela gosta de tratar a condição de reformada.
Temos uma promessa feita no dia do meu aniversário. Para o ano faremos as bodas de ouro na nossa amizade e faremos uma viagem juntas. Só as duas. Ao Brasil.
É a este estímulo, esta expectativa, este objectivo que hoje me agarro para sorrir e acreditar que poderemos dentro em breve fazer uma viagem que pode ser de truz, uma vez que juntas aprontamos para valer. Juntas, uma diz mata a outra diz esfola, sempre.
É por tudo isto e muito mais que hoje mesmo que não queira, arme em forte, a dor de ver a minha querida amiga ir embora, fechando mais um ciclo da nossa vida de amizade tão longa e quase sempre à distância, é mais forte.
Deixo uma mensagem porque não sendo ela lamechas como eu, gosta pouco que me ponha com choradeiras e a única coisa que me disse quando nos despedimos foi: Fica bem e porta-te bem.
Kamba diami vai só bem ya? Vai para o teu lugar, que é na nguimbi que te pertences, que nos pertencemos. É lá que as nossas almas de filhas da terra são mais elas. Boa viagem. Vou portar-me...bem. O melhor que souber. E me der mais jeito. Ah, e finalmente posso fazer dieta. É que foi muita asneira junta. Muitos gelados, muitos pastéis de vento. E dos outros. E bolos de chocolate e não só. E pregos do vizinho debaixo. Muita radler. Enfim...foi muito bom. Nunca tínhamos estado tanto tempo juntas por tanto tempo depois de 1975.
Vou portar-me bem sim. Porque quero ir ao Brasil contigo. Quero estar no Olival ou na Codivel contigo. Quero estar em Luanda contigo. Quero a nossa amizade por muitos mais anos. Enquanto estivermos por aqui neste mundo de Deus que tem abençoado ao longo dos anos esta amizade que afinal foi como família. Nem escolhemos, mas aconteceu e fazemos acontecer sempre.
Boa viagem kamba diami. Estou tão triste...mas estou tão grata!
Beijos no coração. Estamos Juntas.
P.S. Olha só a foto. Estávamos na Barra do Dande. Mais elegantes. Lol!
Não prometemos, mas devíamos, que temos de levar a dieta a sério. Somos criaturas de risco né? Olha só a idade e todos os males que ela traz...A minha vida é feita de escalas. A intervalos. Breves momentos. Presentes. Coisas poucas. Por vezes muitas.
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