quinta-feira, 17 de maio de 2012

vamos matabichar, avô?

foto tukayana.blogspot
É feriado. Ou domingo. Não sei bem. P'ra mim os dias são todos santos. A avenida é de terra batida. Os cipaios me metem medo. Deve ser de virem em bando, fardados de igual. Como as gaivotas e outros bichos d' asas que passam no céu, parece casamento. Deve ser do  passo ritmado. Parece  estão a marchar lá no quartel. Deve ser d'eu ser tão candengue ali na porta, parece que é no fim do mundo mas afinal até és meu vizinho. Deve ser de estar te chamando e eles não terem conhecimento que sou tua neta querida A única que tens. Vai vir mais mas nem eu nem tu sabemos.
- Avôooooooooo! Avôooooooooo! A mãe mandou-te chamar p'ra vires matabichar. Chamo, com a voz sumida de medo dos cipaios. Mas quem disse eu sou de desistir? A Clarita do sô Santos e dona Celeste?  Essa miúda que sobe na mulembeira através dos seus fios resistentes? Mentira! Essa miúda, não. Não desiste mesmo, quando mete umas coisas na cabeça.
- Avôoooooooo! Avôooooooooooo! continuo a chamar e os cipaios a se aproximarem, me olhando.  Cada vez mais. Já estou a ouvir - toc toc, toc toc, dos pés, parece estão no quartel. Muito direitos, parece engoliram pau da cana doce. Chapéu na cabeça que não sei como é que é o nome dele. Tem dois bicos, um para a frente e outro para trás. Lhe dão ar de comando. Um bando deles. Feito pássaro que voa no céu. Vai ver vão-me agarrar. Fico arrepiada. Até hoje, me arrepio quando tenho medo.
Vai ser o que Deus quiser. E eles também. Tou mesmo ali sozinha, sete horas da manhã, a mãe tá fazer café de cafeteira e leite nido, lá em casa, a cubata, como lhe oiço tratar, só porque não é de tijolo. Será que me vão prender? Não fiz nada de mal. Eu sei o que é xutarem no calaboiço, bandido. Quando apanham ladrão a roubar, depois duma tareia de ficar a deitar sangue, de poça no chão junto da cabeça, lhe atiram água no corpo, na cabeça principalmente, lata grande daquela de ir no chafariz, que vem do puto com chouriços e lhe levam na esquadra. Eu sei porque tenho a mania de escutar as conversas dos mais velhos. Do sô Santos, do avô Carvalho, tio Augusto, primo Fernando e dos outros avilos que vão jogar xinquilho e cartas lá em casa. Até as conversas que a Lucrécia tem quando estamos só na esteira, a comer feijão de óleo de palma, escondida da mãe e ela  diz com o dedo esticado na frente do meu nariz: menina clarita, tua mãe vai-te bater e vai-me ralhar, vais ver só. Não podes comer feijão, olha só quando tiveste tifo e ficaste na cama naquela hora, távamos-te a chorar ias morrer, caté a Diana não ladrava mais e ficava no pé da tua cama te olhando?
É dia santo sim. É dia de irmos passear na carrinha azul. Se calhar vamos buscar a Lisete,  p'ra vir passear também, minha kamba desde que nasci, que mora no largo e é filha da dona Rosa e do maior amigo de todos os verdadeiros, do sô Santos,  sr. Eurico, apaixonado de pombos correio, caté põe aquela anilha bonita, parece gargantilha, no pescoço deles. A Lisete é irmã da Laura e do Kaquito, mais velhos, que conheço bué porque quando vou buscar os ovos na dona Ester, lá no largo e faço buraco no dito e bebo ( que nojo! ) a mãe da minha kamba que apesar de me kuiar bués, me passa raspanete e os seus mais velhos também. 
- Euêeeeee, a dona Celeste vai-te bater, espera só, reforçando no sinal, com a mão aberta. Outras vezes, quando vou  na casa da minha kamba, eles estão todos lá. Ela cozinha caldo, como sempre, ele passa brilhantina nos cabelos, se olha no espelho, ouvem música no rádio velho do sr. Eurico que tem costume  de ouvir essas emissoras que são estrangeiras e não podem ser escutadas, parece é proibido. Diz que lhes levam no xelindró. Só mesmo o pai da minha kamba, meu pai, sô Santos e o avô é que eu sei que escutam toda a hora essas palavras que saiem do rádio que eu ainda não percebi quem é que fala lá dentro. Como é essa coisa que não estou a lhe ver o homem e só estou a escutar as palavras dele?
O avô não ouve. Obrigada. A minha voz não sai da garganta feita voz de gente. Até hoje, fico fraca de voz quando me sobe os calundus na cabeça. Vai ver, é por isso que eu gosto da voz dos outros. Esse medo todo mas escapei de ficar gaga. Deus que me livre, eu gosto tanto de falar, olha só ter de repetir, tomar balanço na idéia p'ra dizer as asneiras que xingo quando me olham a me querer gozar. E quando me chamam daqueles nomes que eu não gosto. Branca de segunda, branca cafusa, pepsi-cola, eu amo pepsi-cola feito vício mesmo. Até hoje gosto de coca-cola, nossa, como gosto, nessa hora ainda não havia. Gostam de me provocar. Gostam de me ver bravar. Até hoje.  Mando cada muxoxo e cada olhar!
E porque o avô não escuta a  minha chamada, espio o quintal, enquanto o grupo de cipaios vai passando nas minhas costas. Retenho a respiração. Parece vou rebentar. Menino Jesus me protege só. E protege.
Olho as mangueiras carregadinhas de mangas. Umas são redondas, cheias de fios. Outras compridas, bem gostosas. Olho a goiabeira. E a pitangueira. Olho o tanque dos peixinhos vermelhos. E os canteiros. Cheios de roseiras que o avô gosta tanto. Tem roseiras aí que são mais velhas que eu. As rosas brancas estão no botão por desabrochar. Das rosas, só não gosto dos picos. Do quintal só não gostei daquele dia, da  moeda de cinco tostões, que engoli perto da figueira e me deram tanta surra nas costas que teve que sair mesmo. Nesse dia queria ir embora do quintal. O avô parece virou cipaio e me gritou e gritou com a moeda e com a mãe e com o pai. A culpa é toda vossa...
Já estou quase para desistir de gritar quando finalmente o avô aparece na varanda. Sorri e vem no portão.
Eu fico parece estou a ver Deus. Como eu gosto deste avô! Até hoje...
-  Vamos matabichar, avô?