terça-feira, 18 de janeiro de 2011

recordando


Há sinas e sinas. E não há coincidências.
Há pessoas que mantêm o seu passado intacto.
O lugar onde nasceram, o outro onde cresceram.
A pulseirinha que o avô deu. As fotografias dos primeiros passos, da 1ª comunhão. O livro da 1ª classe. O dente que caiu e a mãe guardou. O caracol que cortou de propósito para conservar dentro do albúm de fotografias de bebé. O primeiro sutien. O livro de autógrafos. A carta de amor primeira. O single que foi oferecido. A mala do enxoval.
Enfim! Um sem número de recordações que servem para viajar no tempo com ternura e saudade quando se abre o baú das imbambas, que já não servem senão para lembrarmos quem fomos.
Eu, como já perceberam porque quem me lê não é burro, eu, não tenho nada disso.
Um dia de Junho entraram na minha casa no nº 126 da avenida brasil e levaram tudo. Para a sede de um Movimento armado, da mesma avenida, que para azar nosso, meu e da minha família, ficava em frente à loja do sô santos e do Colégio a onde eu estudara e dava aulas na época e onde a caçula estudava então.
Óbvio que se foram os anéis e as pulseiras, apesar de terem ficado os dedos e os braços. E os albuns de fotografias. E livros. E tudo e tudo, mesmo.
O que me foi dado guardar foi o que ficou no chão por impossibildade de carregarem e roubarem tudo, porque nessa noite fatídica faltou a luz, talvez pelos confrontos violentos entre dois dos três Movimentos, o que tornou mais difícil o assalto.
Meia dúzia de fotografias, uns colares de missangas, um copo com o emblema do MPLA, (a sorte que eu tive de não o terem visto), postais e coisas aparentemente sem importância que converti depois, em fundamentais, foi o que me restou e que ainda hoje tenho guardadas como relíquias.
Nesse dia, 4 de Junho de 1975, saí da minha casa no 126 e nunca mais voltei a viver lá. A tal casa que penso que foi demolida para lá construirem e que este ano pude chegar bem mais perto e perceber que ali já não há nada de meu senão as mangueiras que o avô plantou. E os meus sonhos, bem como os do mano Zé, da mãe, do pai e do avô Carvalho.
Nesse dia que falei, fugi da minha casa e procurei abrigo no início da avenida, junto à alameda d. João II. No 3ª C deste prédio. Da direita. Ali vivia a família Garnacho Rocha. A minha madrinha de crisma e o marido bem como os seus quatro filhos. Que viveram ao meu lado durante anos a fio, quando vivi junto à casa Bastos, no 162.
Curioso... Vivi em quatro casas diferentes. Todas na avenida brasil; duas delas com os números de porta idênticos. 162, 126.
Era quase aqui que queria chegar. Das quatro moradas diferentes, três das casas já não existem.
Sobrou apenas esta, a do rés-do-chão, onde vivi entre Junho e Julho de 1975. Exactamente aquela onde está o reclame Vitécnica.
Depois de uns dias no 3º C, passei para o rés-do-chão e dali para Portugal.
É bom poder lembrar tudo isto passando por cima das cicatrizes sem que estas doam numa dor de alma de não perdoar.
A avenida Brasil foi palco de uma violência tão grande como dolorosa para quem ali vivia nesse 74/75 fatídico. De todas as habitações onde vivi apenas sobrou esta. E apesar da saudade que tenho desses tempos, do que vivi em cada uma das casas, conformei-me com esta grande coincidência(?). Logo eu, uma carangueja assumidíssima que tanto escarafuncha o passado e tanto se alimenta dele, apenas consegue fotografar o lugar onde viveu um mês em vinte de vida...
Nada acontece por acaso e mantenho que não há coincidências.
Porque será que isto aconteceu comigo? Só queria perceber, porque perdoar, perdoei há muito.

Sem comentários: