foto tukayana.blogspot
É domingo.
O dia amanheceu cinzento. Há cacimba cobrindo o bairro. Será que só na Vila Alice tem estes borrifos, dizem, é molha-tolos? Aprendi isso mais tarde. Na Vila Alice sabem tudo e nunca que ouvi essa expressão. Parece que é quando chove mas não molha. Aprendi mais tarde, diz que é, nim. A coisa boa que fica desse nim, é o cheiro húmido da terra molhada. Pensando bem, no cacimbo chove? Não. P’ra quê esses truques do tempo, parece finta estilosa a fingir manhã de chuva?
Gosto do cacimbo. À noite até que dá p’ra vestir o casaco de malha fininha que me ofereceram nos anos. Branco. Muito fino, quer dizer, chique, que até parece foi comprado numa dessas novas boutiques da Baixa. Hoje vou calçar os sapatos picotados, encarnados e brancos que comprei na sapataria Lord, com o dinheiro que o avô Carvalho me mandou de prenda d’ anos. E vestir o vestido d’ alças, chão azul escuro coberto de malmequeres grandes e pequenos. Dona Fortunata é que fez, n’ amarra. Não desgrudei dela até ficar pronto. Está-se a usar. O pai trouxe dois cortes, do Quintas. Um p'ra mim, outro para a mãe. Padrões diferentes, não somos gémeas, ora essa! Tremo só de pensar que sô Santos é que escolhe o padrão. Não gosto dos cortes de tecido terylene que tem a mania de trazer, parece vestido de boda. A mãe tem um, verd' água. Mas é a mãe. Eu não. Prefiro comprar popelina ou chita, nos Bastos, Suba ou Gajajeira. A Gajajeira tem rolos de tecido a metro, bué da nice. Baratérrimos. Já fui lá com as minhas kambas.
O pai comprou o jornal; ao domingo traz o Bamby e eu leio desde kanuca. E faço as sete diferenças. O engraxador dos domingos, já chegou. Entra para o quintal, a Bolinha cheira-o e não lhe ladra. Já é da casa. E é candengue. Cão que é cão não ladra nem morde nos mais novos. O pai lê o jornal enquanto engraxa os sapatos. O almoço vai ser caldeirada de cabrito. Ele que está a fazer. Já cheira até no quintal. O kota gosta de cozinhar. A comida dele, kuia. Sô Santos é grande! E manda. A mãe acha que ele sabe mandar. E se manda bem que continue. Poupa-lhe trabalho e cansada anda ela de lavar roupa no tanque, engomar, ( ainda bem que já temos ferro elétrico ) e limpar. A Lucrécia está doente e deixou de vir. Mandou a Ana, irmã dela, mas lhe morreu um filho que tinha com o André, o empregado do pai, caté lhe deu uns dias p’ra fazer o óbito lá no Rangel onde eles vivem, depois o André voltou mas a Ana, não. Agora não temos lavadeira. Está na hora do pai comprar máquina de lavar como gente fina tem. Alguns amigos compraram e até que nem são finos. .
A mesa hoje vai ter convidados. Vivem sozinhos e ao domingo vivem mais sozinhos. O pai convida e adoça os domingos dos solitários. Eu gosto de ver a mesa cheia. O primo Fernando desde que se separou da Emília, mulher bonita é essa, sempre de cabelo, ripado, cheio de laca que nem um fio levanta com o vento, unhas grandes e encarnadas, blusa d’ alças dando lacinhos e calças de mousse justas ao corpo, presas no pé com uma tira, cheirando a colónia Santa Clara, o primo Fernando, desde que saiu da casa dele e se mudou para uma pensão na avenida, vem almoçar aqui em casa aos domingos e o António Barbeiro, quer corte cabelos quer não, só falha se estiver doente. É o pai da Carminho, que está a ser criada pela D. Maria da Luz, ( parente deles e minha vizinha ), desde que a mãe morreu. Não a conheceu. Tenho pena dela, não sabe o que é ter uma dona Celeste, que nem eu. A D. Maria da Luz tem uma horta no quintal. E tem perus que me assustam, à minha passagem. E tem livros de cozinha fantásticos e às tardes, nas férias grandes, para orgulho da mãe, coitada da mãe que se orgulha com tão pouco, vou p’ra lá copiar as receitas que me agradam. Manda-ma para cá, diz à mãe, está aí sem fazer nada. Eu vou sem a mãe mandar porque gosto. Acho, posso ser cozinheira nas horas livres de ser médica, que é mesmo o que eu quero. Encantam-me doces com natas. Só agora começaram a aparecer à venda. E não têm nada a ver com as natas do leite, brrrr que nojo. As natas p’ra bater, que conheço, vêm em sacos como os sacos de leite, da Primor. Na baixa. Perto da Mutamba. Já as fiz para comer com morangos que vêm do sul, em caixinhas. Se o avô não vivesse em Moçâmedes, quer dizer, aprendi depois que é Namibe, tínhamos morangos plantados por ele no nosso quintal. Quando era candengue comia-os e comia também figos da Metrópole, que aprendi depois que é apenas e só, Portugal. Ele tinha uma figueira, que mais parecia um arbusto, mas dava meia dúzia de figos e desses, o primeiro era para mim. Sabem aos figos das mulembeiras, só são um pouco, muito, para falar verdade, maiores.
Tenho tantas saudades do avô! Só vem no Natal. Trocava o António Barbeiro e até o primo Fernando, esses dois juntos, pelo avô a comer connosco caldeirada de cabrito, neste domingo de cacimbo.
Ainda falta aparecer o Sr. Rocha, a quem o pai chama, nas costas dele, o Rocha maneta, ele é maneta, mas chamar assim, de insulto? Não. Temos respeito. Já basta o que basta. Agora, rimos a bom rir porque ele é o tal que não sabia que os supositórios não eram p’ra beber. Ó santa ignorância! Ó Rocha isso nem parece seu, homem! Disse o pai. E a contar aos amigos comuns - Tem a mania que sabe tudo ( e sabe mais do que alguns que vão lá à loja ) e afinal não sabe que os supositórios são p’ ra meter no traseiro. Sô Santos é transmontano e diz tudo com as letras todas. Traseiro! p’ra quê que estou aqui a armar? Mataco, foi o que ele disse.
A mãe prepara a limonada com limas, muito gelo e açúcar. Na geleira tem mission e sprit mas eu prefiro limonada. O pai tira os copos de uísque da cristaleira e vai buscar a soda. Quando eles chegarem bebem um uísque para arrebitarem. Houve uma vez que provei, mas com soda não gosto. Com seven-up ou coca-cola, sim. A moda de pôr cola no uisque é uma modernice que o pai experimentou numa festa, no tio Augusto. O meu uísque é de primeira, diz o pai. Não é nenhuma mistela. Ainda tentou beber Sbell, há inclusive cá em casa, mas voltou ao de malte.
Quando comemos cabrito, escolhe a cabeça, e divide os miolos comigo e com o mano Zé. A Paulinha é pequenina e ainda não gosta. O que eu gosto mais na caldeirada é mesmo dos miolos e do molho que ensopa o pão. Esmigalho as batatas, desfio um pouco de cabrito e pronto, estou almoçada. A seguir, vão jogar às cartas ou vão embora e o pai vai ouvir o relato. Tem dias que vou com o primo Fernando até à Ilha. Fala-me das novas namoradas e deixa-me fumar. Também…já tenho 16 anos e pareço mulher. Quando visto as calças encarnadas boca de sino e a blusa branca sem costas, pinto os lábios de encarnado e encarapinho o cabelo com os rolos de esponja que descobri na drogaria dos Combatentes, os tropas que passam por mim nos unimogs dizem tantos disparates que só não faço asneiras com os dedos nem os mando para a p*** que os pariu porque eles são mais mal educados que eu e ouvia das boas. Nunca mais me esqueço d’um que me disse uma barbaridade de disparates depois de lhe ter mandado à tuge. Em português do Porto e em verso.
Quando saio com o primo Fernando, curto bué; tem música moderna nas cassetes, posso fumar e contar os meus segredos que não chegam aos ouvidos do pai,( já à mãe conto tudo, ela só abana a cabeça e diz, ai maria clara se o teu pai sabe ) vamos beber coca-cola, eu, um fino, ele, ou comer baleizão ao farol. Na ponta da Ilha. Mesmo ao pé do Barracuda, que está sempre cheia de gente fina. Parece com os rapazes e raparigas do Salvador Correia. Ou aqueles que vivem no Alvalade, no Bairro do Café ou no Cruzeiro. Ou os filhos dos fazendeiros. Cheios de importância, pose e proa. Como se fosse verdade a estória do sangue azul. Mentira, temos todos sangue encarnado. Na Vila Alice não há fenómenos desses, ai deles…
Mas a propósito do Barracuda dizem que há uns que frequentam este espaço, quer dizer, e outros, aí por Luanda fora,( há de tudo), que têm descapotáveis, tratam-se por você ( que ridículo ) e diz-se, as más línguas, ou línguas invejosas, sei lá, que fumam liamba nas festas nos apartamentos da baixa para o efeito; gostava de ser mosca para comprovar; às vezes oiço o sô Santos – se a minha filha fosse dessas, dava cabo dela, ela que se atreva, vai logo para a rua com a roupinha do corpo e com uma carga de porrada de cavalo marinho.
Até tremo só de pensar. Tenho a certeza que a carga de porrada levo mesmo, se mijar fora do penico. P’ra quê quero estar numa farra de snobs a fumar liamba e a despir a roupa, sim, porque o sô Santos não diz, mas há quem diga, lá está, dizem, se é o que eu vejo não é nada se é o que dizem é tudo, que tudo vale, menos tirar olhos; são grandes orgias, bebida, música, liamba e sexo. Por falar em sexo, o Mário meu vizinho andava com uma revista pornográfica e eu apanhei-a e folheei, curiosa. Pela primeira vez com esta idade vi pornografia ali ao vivo ( salvo seja ) e a cores. Nunca mais gostei de porcos brancos, que aprendi depois, que existem no puto, pois aqui só vejo porcos pretos. Por falar em sexo…
Nas festas o que eu gosto é de conversar, comer croquetes e empadinhas, tartes d’ amêndoa e jinguba, fumar Baía e dançar. No limite, dançar agarradinho o je t’ aime moi non plus mas se se põem a arfar, faço força com os cotovelos no peito dos rapazes e piso-lhes os pés. Quê que é isso? Sou alguma miungueira ou quê? Estás-me a estranhar? Ou não me convidam mais, ou aceitam as regras, porque vale mais um pássaro na mão que dois a voar. Ouvi dizer isto muitas vezes. Nunca dancei com namorado nas festas, por isso não sei se espetava os cotovelos no peito dele.
O domingo passa rápido. Sente-se no fim da tarde que se anuncia nas traineiras saindo do porto para a pesca, seguidas pelas gaivotas. Na contra-costa , lá para as bandas do Mussulo, o sol avermelha-se, numa bola de fogo sobre as palmeiras, esgueirando-se para o mar mais por detrás, quem sabe aonde; se o avô Carvalho vivesse em Luanda em vez do Namibe, sabia a resposta. Sente-se nessa hora do sol a se despedir da tarde que causa uma nostalgia qualquer até a mim que tenho um passado tão curto e uma infância tão feliz, acho que saudade existe do não sei quê que ainda vamos viver e não sabemos o que é mas vai ser bom com certeza, só pode ser bom. Temos tudo para ser. Tenho tudo para ser. Idade. Família. Sonhos. Terra…
Aprendi depois que a saudade mais do que no futuro, mora no passado. A idade não pára de correr como o sol p’ra poente, a família vai ficando pequena e a terra, a gente não perde, mas não é dada como certa, apesar da vida me ensinar que a gente se quer, conquista. Deve haver mudança, é imperioso que haja mudança e a minha terra, essa, continua linda e eu lhe toco e toco o céu cheio de estrelas, o céu mais estrelado do meu horizonte, com a palma das minhas mãos quando estou em casa, como nos domingos d’ antigamente.
O dia amanheceu cinzento. Há cacimba cobrindo o bairro. Será que só na Vila Alice tem estes borrifos, dizem, é molha-tolos? Aprendi isso mais tarde. Na Vila Alice sabem tudo e nunca que ouvi essa expressão. Parece que é quando chove mas não molha. Aprendi mais tarde, diz que é, nim. A coisa boa que fica desse nim, é o cheiro húmido da terra molhada. Pensando bem, no cacimbo chove? Não. P’ra quê esses truques do tempo, parece finta estilosa a fingir manhã de chuva?
Gosto do cacimbo. À noite até que dá p’ra vestir o casaco de malha fininha que me ofereceram nos anos. Branco. Muito fino, quer dizer, chique, que até parece foi comprado numa dessas novas boutiques da Baixa. Hoje vou calçar os sapatos picotados, encarnados e brancos que comprei na sapataria Lord, com o dinheiro que o avô Carvalho me mandou de prenda d’ anos. E vestir o vestido d’ alças, chão azul escuro coberto de malmequeres grandes e pequenos. Dona Fortunata é que fez, n’ amarra. Não desgrudei dela até ficar pronto. Está-se a usar. O pai trouxe dois cortes, do Quintas. Um p'ra mim, outro para a mãe. Padrões diferentes, não somos gémeas, ora essa! Tremo só de pensar que sô Santos é que escolhe o padrão. Não gosto dos cortes de tecido terylene que tem a mania de trazer, parece vestido de boda. A mãe tem um, verd' água. Mas é a mãe. Eu não. Prefiro comprar popelina ou chita, nos Bastos, Suba ou Gajajeira. A Gajajeira tem rolos de tecido a metro, bué da nice. Baratérrimos. Já fui lá com as minhas kambas.
O pai comprou o jornal; ao domingo traz o Bamby e eu leio desde kanuca. E faço as sete diferenças. O engraxador dos domingos, já chegou. Entra para o quintal, a Bolinha cheira-o e não lhe ladra. Já é da casa. E é candengue. Cão que é cão não ladra nem morde nos mais novos. O pai lê o jornal enquanto engraxa os sapatos. O almoço vai ser caldeirada de cabrito. Ele que está a fazer. Já cheira até no quintal. O kota gosta de cozinhar. A comida dele, kuia. Sô Santos é grande! E manda. A mãe acha que ele sabe mandar. E se manda bem que continue. Poupa-lhe trabalho e cansada anda ela de lavar roupa no tanque, engomar, ( ainda bem que já temos ferro elétrico ) e limpar. A Lucrécia está doente e deixou de vir. Mandou a Ana, irmã dela, mas lhe morreu um filho que tinha com o André, o empregado do pai, caté lhe deu uns dias p’ra fazer o óbito lá no Rangel onde eles vivem, depois o André voltou mas a Ana, não. Agora não temos lavadeira. Está na hora do pai comprar máquina de lavar como gente fina tem. Alguns amigos compraram e até que nem são finos. .
A mesa hoje vai ter convidados. Vivem sozinhos e ao domingo vivem mais sozinhos. O pai convida e adoça os domingos dos solitários. Eu gosto de ver a mesa cheia. O primo Fernando desde que se separou da Emília, mulher bonita é essa, sempre de cabelo, ripado, cheio de laca que nem um fio levanta com o vento, unhas grandes e encarnadas, blusa d’ alças dando lacinhos e calças de mousse justas ao corpo, presas no pé com uma tira, cheirando a colónia Santa Clara, o primo Fernando, desde que saiu da casa dele e se mudou para uma pensão na avenida, vem almoçar aqui em casa aos domingos e o António Barbeiro, quer corte cabelos quer não, só falha se estiver doente. É o pai da Carminho, que está a ser criada pela D. Maria da Luz, ( parente deles e minha vizinha ), desde que a mãe morreu. Não a conheceu. Tenho pena dela, não sabe o que é ter uma dona Celeste, que nem eu. A D. Maria da Luz tem uma horta no quintal. E tem perus que me assustam, à minha passagem. E tem livros de cozinha fantásticos e às tardes, nas férias grandes, para orgulho da mãe, coitada da mãe que se orgulha com tão pouco, vou p’ra lá copiar as receitas que me agradam. Manda-ma para cá, diz à mãe, está aí sem fazer nada. Eu vou sem a mãe mandar porque gosto. Acho, posso ser cozinheira nas horas livres de ser médica, que é mesmo o que eu quero. Encantam-me doces com natas. Só agora começaram a aparecer à venda. E não têm nada a ver com as natas do leite, brrrr que nojo. As natas p’ra bater, que conheço, vêm em sacos como os sacos de leite, da Primor. Na baixa. Perto da Mutamba. Já as fiz para comer com morangos que vêm do sul, em caixinhas. Se o avô não vivesse em Moçâmedes, quer dizer, aprendi depois que é Namibe, tínhamos morangos plantados por ele no nosso quintal. Quando era candengue comia-os e comia também figos da Metrópole, que aprendi depois que é apenas e só, Portugal. Ele tinha uma figueira, que mais parecia um arbusto, mas dava meia dúzia de figos e desses, o primeiro era para mim. Sabem aos figos das mulembeiras, só são um pouco, muito, para falar verdade, maiores.
Tenho tantas saudades do avô! Só vem no Natal. Trocava o António Barbeiro e até o primo Fernando, esses dois juntos, pelo avô a comer connosco caldeirada de cabrito, neste domingo de cacimbo.
Ainda falta aparecer o Sr. Rocha, a quem o pai chama, nas costas dele, o Rocha maneta, ele é maneta, mas chamar assim, de insulto? Não. Temos respeito. Já basta o que basta. Agora, rimos a bom rir porque ele é o tal que não sabia que os supositórios não eram p’ra beber. Ó santa ignorância! Ó Rocha isso nem parece seu, homem! Disse o pai. E a contar aos amigos comuns - Tem a mania que sabe tudo ( e sabe mais do que alguns que vão lá à loja ) e afinal não sabe que os supositórios são p’ ra meter no traseiro. Sô Santos é transmontano e diz tudo com as letras todas. Traseiro! p’ra quê que estou aqui a armar? Mataco, foi o que ele disse.
A mãe prepara a limonada com limas, muito gelo e açúcar. Na geleira tem mission e sprit mas eu prefiro limonada. O pai tira os copos de uísque da cristaleira e vai buscar a soda. Quando eles chegarem bebem um uísque para arrebitarem. Houve uma vez que provei, mas com soda não gosto. Com seven-up ou coca-cola, sim. A moda de pôr cola no uisque é uma modernice que o pai experimentou numa festa, no tio Augusto. O meu uísque é de primeira, diz o pai. Não é nenhuma mistela. Ainda tentou beber Sbell, há inclusive cá em casa, mas voltou ao de malte.
Quando comemos cabrito, escolhe a cabeça, e divide os miolos comigo e com o mano Zé. A Paulinha é pequenina e ainda não gosta. O que eu gosto mais na caldeirada é mesmo dos miolos e do molho que ensopa o pão. Esmigalho as batatas, desfio um pouco de cabrito e pronto, estou almoçada. A seguir, vão jogar às cartas ou vão embora e o pai vai ouvir o relato. Tem dias que vou com o primo Fernando até à Ilha. Fala-me das novas namoradas e deixa-me fumar. Também…já tenho 16 anos e pareço mulher. Quando visto as calças encarnadas boca de sino e a blusa branca sem costas, pinto os lábios de encarnado e encarapinho o cabelo com os rolos de esponja que descobri na drogaria dos Combatentes, os tropas que passam por mim nos unimogs dizem tantos disparates que só não faço asneiras com os dedos nem os mando para a p*** que os pariu porque eles são mais mal educados que eu e ouvia das boas. Nunca mais me esqueço d’um que me disse uma barbaridade de disparates depois de lhe ter mandado à tuge. Em português do Porto e em verso.
Quando saio com o primo Fernando, curto bué; tem música moderna nas cassetes, posso fumar e contar os meus segredos que não chegam aos ouvidos do pai,( já à mãe conto tudo, ela só abana a cabeça e diz, ai maria clara se o teu pai sabe ) vamos beber coca-cola, eu, um fino, ele, ou comer baleizão ao farol. Na ponta da Ilha. Mesmo ao pé do Barracuda, que está sempre cheia de gente fina. Parece com os rapazes e raparigas do Salvador Correia. Ou aqueles que vivem no Alvalade, no Bairro do Café ou no Cruzeiro. Ou os filhos dos fazendeiros. Cheios de importância, pose e proa. Como se fosse verdade a estória do sangue azul. Mentira, temos todos sangue encarnado. Na Vila Alice não há fenómenos desses, ai deles…
Mas a propósito do Barracuda dizem que há uns que frequentam este espaço, quer dizer, e outros, aí por Luanda fora,( há de tudo), que têm descapotáveis, tratam-se por você ( que ridículo ) e diz-se, as más línguas, ou línguas invejosas, sei lá, que fumam liamba nas festas nos apartamentos da baixa para o efeito; gostava de ser mosca para comprovar; às vezes oiço o sô Santos – se a minha filha fosse dessas, dava cabo dela, ela que se atreva, vai logo para a rua com a roupinha do corpo e com uma carga de porrada de cavalo marinho.
Até tremo só de pensar. Tenho a certeza que a carga de porrada levo mesmo, se mijar fora do penico. P’ra quê quero estar numa farra de snobs a fumar liamba e a despir a roupa, sim, porque o sô Santos não diz, mas há quem diga, lá está, dizem, se é o que eu vejo não é nada se é o que dizem é tudo, que tudo vale, menos tirar olhos; são grandes orgias, bebida, música, liamba e sexo. Por falar em sexo, o Mário meu vizinho andava com uma revista pornográfica e eu apanhei-a e folheei, curiosa. Pela primeira vez com esta idade vi pornografia ali ao vivo ( salvo seja ) e a cores. Nunca mais gostei de porcos brancos, que aprendi depois, que existem no puto, pois aqui só vejo porcos pretos. Por falar em sexo…
Nas festas o que eu gosto é de conversar, comer croquetes e empadinhas, tartes d’ amêndoa e jinguba, fumar Baía e dançar. No limite, dançar agarradinho o je t’ aime moi non plus mas se se põem a arfar, faço força com os cotovelos no peito dos rapazes e piso-lhes os pés. Quê que é isso? Sou alguma miungueira ou quê? Estás-me a estranhar? Ou não me convidam mais, ou aceitam as regras, porque vale mais um pássaro na mão que dois a voar. Ouvi dizer isto muitas vezes. Nunca dancei com namorado nas festas, por isso não sei se espetava os cotovelos no peito dele.
O domingo passa rápido. Sente-se no fim da tarde que se anuncia nas traineiras saindo do porto para a pesca, seguidas pelas gaivotas. Na contra-costa , lá para as bandas do Mussulo, o sol avermelha-se, numa bola de fogo sobre as palmeiras, esgueirando-se para o mar mais por detrás, quem sabe aonde; se o avô Carvalho vivesse em Luanda em vez do Namibe, sabia a resposta. Sente-se nessa hora do sol a se despedir da tarde que causa uma nostalgia qualquer até a mim que tenho um passado tão curto e uma infância tão feliz, acho que saudade existe do não sei quê que ainda vamos viver e não sabemos o que é mas vai ser bom com certeza, só pode ser bom. Temos tudo para ser. Tenho tudo para ser. Idade. Família. Sonhos. Terra…
Aprendi depois que a saudade mais do que no futuro, mora no passado. A idade não pára de correr como o sol p’ra poente, a família vai ficando pequena e a terra, a gente não perde, mas não é dada como certa, apesar da vida me ensinar que a gente se quer, conquista. Deve haver mudança, é imperioso que haja mudança e a minha terra, essa, continua linda e eu lhe toco e toco o céu cheio de estrelas, o céu mais estrelado do meu horizonte, com a palma das minhas mãos quando estou em casa, como nos domingos d’ antigamente.
2 comentários:
Maravilhosa prosa, querida Clarinha.
Quando leio estes textos acho um desperdício não serem passados para papel.Bjs
Obrigada, Maria....
Quando eu souber escrever livros, então a gente fala. Bjs
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