sexta-feira, 13 de julho de 2012

um dia de aulas

“ É meio dia irmãos, hora em que o mensageiro de Deus, São Gabriel anunciou a Maria o maior acontecimento da história, da nossa história divina.
Isto é o limite “. A minha liberdade chega ao fim. O rádio está sintonizado na rádio eclésia, emissora católica de Angola. Apesar de mudar para o rádio clube para  o “ Contacto “ que começa às 16.  Todos os dias à noite ou de manhã o botão roda para a rádio eclésia, essa tal que dá missa todas as noites.  E todos os dias no meio dia é essa lenga-lenga – é meio dia irmãos, blá blá blá…que significa aviso, perigo, meio-dia. Ora de acelerar.
A bata está húmida. É preciso secá-la ao ferro. Se tenho duas batas como é que uma está húmida? Pergunto. Estiveste a fazer o quê que não estendeste a bata a tempo? A Lucrécia faz muxoxos ruidosos  e pragueja impropérios que me arreliam e me fazem responder-lhe. Também…não é difícil.
Ela não se fica. Devolve, a xingar. Cala-te a  boca, tenho idade p’ra ser tua mãe, conheço-te da barriga dela e aponta para a dona Celeste que está mais que habituada às nossas trocas de piropos. Cala-te a  boca menina, olha que largo o ferro e és tu que tens de passar a bata.
Não se justifica. Não se cala e não evita a maka. Foi sempre assim, querida que eu sei lá(?) esta não menos querida Lucrécia, lavadeira da casa, primeiro do avô e depois nossa. Fomos sempre assim, uma com a outra. Hoje, a minha prioridade única é uma das duas batas que tenho, lavada e engomada. Não posso apanhar falta de material. Nos últimos tempos, já não são tão severas mas é bom não facilitar. Ainda me lembro do primeiro dia de aulas e da leitura do regulamento. Era um vómito , se calhar a palavra é demasiado nojenta, era uma séca, está melhor assim,  aquela ladainha que todas conhecíamos desde os 10 anos. Se as aulas eram à tarde, com o calor acabado de chegar  a despachar o cacimbo  e almoço comido às pressas, dava um sono que se transformava num pesadelo. Parece que estou a ver-me, a ver-nos no primeiro dia. E a Julieta a tremer. Não fosse a pele castanha daquilo a que chamam raça, e até virara rosto pálido com tantos interrogatórios sobre a bata. Na verdade era diferente das nossas. Abotoava atrás e tinha cinto. A cor não era branco imaculado e a sarja era mais fina e brilhante. Como é que elas iam deixar passar isso? Não deixaram. Uns dias depois, a Julieta apareceu com uma bata igualzinha à nossa e com o monograma do liceu bordado a linha de cor desse ano. Teve de ser. O rigor era impressionante naquele tempo.  Quantos anos tínhamos mesmo? 13 14, 15? Por aí. Ainda há quatro anos atrás, quando a fui visitar a Geneve, uma noite que ficámos lá em casa a celebrar a  Páscoa degustando um prato suíço de batatas com pele e queijo e fatias de presunto e picles, de nome raclette, a beber um champanhe para lá de bom, inevitavelmente fomos ter a esse tempo do liceu, muito antes de decidir que ia ser enfermeira como a tia, que morreu de tétano.  Mas estava a dizer que elas não facilitam e  mesmo quando a mini-saia chegou,  exigiam o tamanho da bata  abaixo do joelho e ainda que as batas encolhessem num propósito de adolescentes atrevidas, ainda assim, o castrador regulamento e todos os itens se mantinham inalterados.  Agora, na missa pascal até podemos subir as escadas centrais, antes só para as professoras e as contínuas. Parece estou a ver a dona Filipa. A professora Darcília e também a sôtora Lígia e a sôtora Aida de braço dado. Sim, há algumas mudanças.
A Lucrécia continua a engomar, a mãe diz que a vitela com esparguete está pronta e eu  pergunto-me o que deu nas duas para se atrasarem e deixarem-me fula da vida. Não tenho idade para ter nervos mas fiquei assim desde que cismei que tinha tétano como a tia enfermeira da Julieta e que acabava do mesmo jeito que ela, finando-me injustamente na flor da idade, ainda mal desabrochava, e pimba, coitadinha, vai-se, foi-se, ai, cruzes canhoto, porque hei-de lembrar-me que sou hipondríaca? Que palavrão que inventaram para quem é maricas com as doenças. E por falar em flor, vem mesmo a talhe de foice, que foi um maldito espinho duma rosa das roseiras do quintal que o avô deixou em vasos de cimento quando foi para Moçâmedes, o culpado desta situação que só terminará quando eu for bater com os costados no banco do hospital de s. Paulo. A última vez que fui não conseguia respirar. Era sábado e o avô tinha estado cá em casa uns meses por causa dum problema no pulmão, ele nem fumava nem nada, não sei como foi ter uma infeção daquelas que o reteve na Casa de Saúde de Luanda, perto do Miramar e do cemitério Velho, tanto tempo. Chegou a hora de voltar para a vida dele em Porto Alexandre onde estava a viver nesse tempo. E eu que conhecia e amava o avô há tantos anos como esta lavadeira duma figa que se chama Lucrécia, quem é que lhe pôs esse nome que nunca conheci mais criatura nenhuma com essa nome estranho e que  não tem a bata pronta, eu que não via outro sol nem outra lua, chorei tanto, sofri tanto que acabei no banco do hospital com falta de ar num sábado à noite sendo observada por um médico indiano enorme e muito bondoso que era o que era preciso para me acalmar  e perceber que há avôs que tiram o ar todo que os netos precisam para respirar quando partem, mesmo que seja apenas para ali, ao dobrar da esquina na província do Namibe.
Hoje nem tenho tempo para comer pão com molho da carne, como entrada,  como faço sempre que o almoço é esparguete guisado com carne, cenoura e chouriço azucrinando a cabeça da dona Celeste que detesta o fogão e as pressões a que a sujeito quando,  é meio dia, irmãos, a hora em que…
Entro à uma hora. Tenho de atravessar a escola 83. Passar em frente à foto Dora e Escola Industrial. Chamar a Arlete. Depois juntas, subirmos o passeio que pertence ao cinema Império. Cruzamo-nos  com os rapazes da Indústria que roçam o rabo pelas paredes do cinema com os seus Ts em riste como se fosse uma arma de arremesso ou de engate, sei lá . Deixando-os para trás mais os piropos que nem sempre caiem bem porque são uns abusados, passamos pelas casas da Defesa Civil, pelas casas de rés de chão e primeiro andar, pelas árvores e pronto. Estamos na estrada que vai dar à estrade Catete. O trânsito aqui é feroz. Já fui atropelada em frente à escola Industrial. Por uma lambreta. Dá-me vontade de rir. Na hora, chorei.  E assustei a Arlete quando me estatelei no chão. E  o pobre senhor que largou a lambreta para me acudir. Nesse dia já não fui às aulas. Tive que ir a um endireita e tudo, lá para as bandas de s. Paulo, mesmo em frente ao mercado.
Finalmente passamos em frente ao sr. Torrão que impecavelmente fardado de branco a que não falta sequer o chapéu de dois bicos, apregoa os seus baleizões e torrões. É caramelo, torrão de alicante, mete na boca e derrete num instante.  Se ele sonhasse que lhe trocamos o pregão por um igual mas a dar para o ordinário…
Isto tudo demora uns 20 minutos. Quero sempre chegar antes do toque. Para conversar um pouco com a Suzete que vem da Boavista e quando chega, já tem no pêlo quilómetros de comboio até ao Bungo e depois machimbombo até ao liceu.
Finalmente o prato da massa que sorvo aos ais porque me escalda o céu da boca e a língua. Ainda não está apurada. À noite deve saber melhor. Se sobrar.
A Lucrécia põe a bata impecavelmente engomada, numa cadeira, ao meu lado. Essa mulher passa que passa, por isso é que é lavadeira da casa há tantos anos e se dá a ares de patroa que nem a mãe, que lhe obedece cegamente; tem idade para ser tia mais velha da dona Celeste e usa e abusa dessa hipotética probabilidade.
Finalmente dependo de mim. Aí vou eu para mais uma viagem. A pé, para mais um dia de aulas.

Sem comentários: