Quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…quando venho da
gandaia, já venho assim, assim, assim…cantava gingando o corpo; ancas e bunda, como
as moças mais velhas que passavam na frente da casa, a caminho da padaria e obrigatoriamente
em frente à loja do sr. Marinho. No muro que dividia a loja da casa dos
radiadores, o Júlio sentava-se e passava horas a fio na conversa com o
empregado, adolescente como ele. O Júlio era o filho do sr. Marinho, colega de profissão
do meu pai. Concorrentes, rivais, se fosse aqui nesta ervilha. Lá não. Chegava
para todos. Eu que estava ali com tudo na loja, era cliente do sr. Marinho,da
loja do Miguel, da loja do Alípio, da loja do Polícia na esquina com a Senado
da Câmara e da loja do Careca, na Vila Alice. Corria-os todos. Cantando esta e
outras músicas. Gastando as moedas de cinco tostões, dez angolares e no limite
dois e quinhentos.
Estes dois, Júlio e o ajudante do velho Marinho, gostavam de implicar comigo e rir do meu jeito um pouco malcriado nas respostas e petulante nos gestos infantis de kanuca do colégio, ali mesmo ao lado dos radiadores e do lado da minha casa também. Todos vizinhos uns dos outros, afinal.
Eu era uma miúda morena, olhos grandes, magricela, pernas que pareciam canivetes, cabelo tipo beatriz costa, para consumição minha… e assunto arrumado, não falamos mais nisso que eu é que mando, dizia o sô santos quando insistia que não queria que o amigo dele António barbeiro, se ia almoçar connosco ao domingo, me cortasse a franja pelo meio da testa que parecia uma besuga como a Fatinha, a Ana Maria e eu própria chamávamos quando as viamos chegar das berças, todas branquelas, com as maçãs do rosto vermelhas, roupas de inverno e sotaque estranho de palavras que não conheciamos. O que me safava era o meu jeito sotaqueado de muangolê, fruto de tudo e também do convívio intenso com Sebastiana, filha da Alice e sobrinha da lavadeira Lucrécia. Na verdade, era prima, porque a Lucrécia é que era sobrinha da Alice, mas era mais velha e a Sebastina chamava-lhe de tia.
Tinha resposta pronta na ponta da língua e não me custava nada xingar de, filho da caixa, da polícia, vai para a tuge ou pior um pouco, acompanhado de aviões nas duas mãos. Ninguém me metia medo. Só sô Santos quando me arregalava os olhos e crescia p’ra mim na base da ameaça do cinto, parecia o mundo ia terminar ali na ponta do seu cinto. Aí sim, eu ficava pequenininha que nem formiga em dia de descanso. Depois voltava a crescer porque vergonha não tinha nenhuma e ia no meu caminho, pés descalços ou em chinelos de meter no dedo, saia plissada, oferta do tio Augusto, brincar para a frente do colégio e cantar, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…numa coreografia de provocar inveja a qualquer uma. E o Júlio ria, ria, no alto dos seus tenros anos de adolescente desengonçado, queixo de rebeca, pele pálida e olhos de gato, calções com suspensórios e sandálias de pneu. Onde vais Clarita? Eu parava de gingar, de cantar, olhava-o e respondia: vou buscar á diána ná pádária, e voltava a cantar toda peneirenta, mexendo e remexendo as ancas, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…
Esta estória já contei tantas vezes que parece não há ninguém que não a saiba. O Júlio ficou colado a esta lembrança para sempre, Deus o tenha. Já partiu. Do Satão para a eternidade. Quem me disse foi um ex-namorado, meu, não dele, grande amigo que foi depois, vejam só se eu algum dia ia imaginar, o Júlio, amigo do…ups, não vou dizer o nome porque meio mundo o conhece e ia ficar constrangedor, não p’ra mim, mas, sei lá, as criaturas ao longo da vida vão mudando e vamos que não queria que se soubesse que fui a “ miúda “ dele (? ) quando era unha com carne do Júlio e até foi este que lhe disse que eu era filha do sô Santos da loja, onde é que eu morava e até que me carregou no colo quando eu era candengue. Mania essa de todos os kambas de infância mais velhos, dizerem que me pegaram no colo, só porque me viram fazer aviões com os dedos, xingar aqueles que me provocavam ou cantar e gingar numa coreografia só minha, eu que inventei, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim… acho que este gostava de dizer isso no outro, para provocar, assim como os candengues fazem - Uôooooooo, eu peguei, tu não!
Há uns anos atrás, por acaso, ou não, encontrei uma colega do liceu, a Lourdes Jerónimo, em Fátima. Vejam só! Naquele dia de Setembro em que os Retornados e suas famílias que já nem são, se juntam para lembrar os velhos tempos. A Lourdes que morava na Caop, ali perto do colégio da rua principal que vai para S. Paulo e antes de chegar aos Combatentes, não sei se o nome dele era Santa Maria Goreti ou Santa Teresinha, havia dois nessa rua, a Lourdes, que foi minha colega no 1º A, acabadas de fazer 10 anos, morava mais perto da avenida brasil que dos Combatentes e nunca soube que era amiga do Júlio e sua família. Vim saber disso ali, naquele domingo de Setembro, quando me disse que estava num grupo de gente conhecida. E eis que de repente, fico na frente do Júlio. Desde 75 que nunca mais o vi. Já tinha mulher e filhos crescidos. Os meus eram pequenos ainda. Afinal não foi por acaso que pegou em mim ao colo. Era mais velho…
Nunca mais fui a esses encontros. Naquele ano aconteceu por acaso. Não era fã. Encontravam-se sempre os mesmos, no mesmo lugar, como guetos criados para se tornarem mais fortes. E o grupo de milhares de pessoas com o mesmo propósito, recordar Angola, matar saudades, reencontrar pessoas, subdividiu-se em células pequenas e fechadas. E eu não gostava de ir. Não pertencia a grupo nenhum. A minha turma estava lá na banda. Os meus amigos ficaram lá. Os que estavam cá também não iam. Mas nesse ano que encontrei a Lourdes e o Júlio, encontrei o padre Luís, meu confessor, na igreja de s. Paulo, a pessoa que me deu catequese e contou a estória do Pinóquio. E santinhos com a oração respetiva e senti-me abençoada por Deus, tal a alegria. Até me apeteceu cantar, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…
Sou pessoa para gostar da gandaia. E a pensar nisto é que hoje senti falta do meu chão, minha avenida, meu porto seguro, minhas pessoas, minha canção…quando vou para a gandaia…caminho assim…assim… assim…
Desse tempo ficou-me a canção e dentro dela, emoções e profundos sentires.
- Onde vais Clarita?
- Vou buscar á Diáana ná pádária …quando vou para a gandaia, caminho assim, assim assim…
Estes dois, Júlio e o ajudante do velho Marinho, gostavam de implicar comigo e rir do meu jeito um pouco malcriado nas respostas e petulante nos gestos infantis de kanuca do colégio, ali mesmo ao lado dos radiadores e do lado da minha casa também. Todos vizinhos uns dos outros, afinal.
Eu era uma miúda morena, olhos grandes, magricela, pernas que pareciam canivetes, cabelo tipo beatriz costa, para consumição minha… e assunto arrumado, não falamos mais nisso que eu é que mando, dizia o sô santos quando insistia que não queria que o amigo dele António barbeiro, se ia almoçar connosco ao domingo, me cortasse a franja pelo meio da testa que parecia uma besuga como a Fatinha, a Ana Maria e eu própria chamávamos quando as viamos chegar das berças, todas branquelas, com as maçãs do rosto vermelhas, roupas de inverno e sotaque estranho de palavras que não conheciamos. O que me safava era o meu jeito sotaqueado de muangolê, fruto de tudo e também do convívio intenso com Sebastiana, filha da Alice e sobrinha da lavadeira Lucrécia. Na verdade, era prima, porque a Lucrécia é que era sobrinha da Alice, mas era mais velha e a Sebastina chamava-lhe de tia.
Tinha resposta pronta na ponta da língua e não me custava nada xingar de, filho da caixa, da polícia, vai para a tuge ou pior um pouco, acompanhado de aviões nas duas mãos. Ninguém me metia medo. Só sô Santos quando me arregalava os olhos e crescia p’ra mim na base da ameaça do cinto, parecia o mundo ia terminar ali na ponta do seu cinto. Aí sim, eu ficava pequenininha que nem formiga em dia de descanso. Depois voltava a crescer porque vergonha não tinha nenhuma e ia no meu caminho, pés descalços ou em chinelos de meter no dedo, saia plissada, oferta do tio Augusto, brincar para a frente do colégio e cantar, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…numa coreografia de provocar inveja a qualquer uma. E o Júlio ria, ria, no alto dos seus tenros anos de adolescente desengonçado, queixo de rebeca, pele pálida e olhos de gato, calções com suspensórios e sandálias de pneu. Onde vais Clarita? Eu parava de gingar, de cantar, olhava-o e respondia: vou buscar á diána ná pádária, e voltava a cantar toda peneirenta, mexendo e remexendo as ancas, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…
Esta estória já contei tantas vezes que parece não há ninguém que não a saiba. O Júlio ficou colado a esta lembrança para sempre, Deus o tenha. Já partiu. Do Satão para a eternidade. Quem me disse foi um ex-namorado, meu, não dele, grande amigo que foi depois, vejam só se eu algum dia ia imaginar, o Júlio, amigo do…ups, não vou dizer o nome porque meio mundo o conhece e ia ficar constrangedor, não p’ra mim, mas, sei lá, as criaturas ao longo da vida vão mudando e vamos que não queria que se soubesse que fui a “ miúda “ dele (? ) quando era unha com carne do Júlio e até foi este que lhe disse que eu era filha do sô Santos da loja, onde é que eu morava e até que me carregou no colo quando eu era candengue. Mania essa de todos os kambas de infância mais velhos, dizerem que me pegaram no colo, só porque me viram fazer aviões com os dedos, xingar aqueles que me provocavam ou cantar e gingar numa coreografia só minha, eu que inventei, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim… acho que este gostava de dizer isso no outro, para provocar, assim como os candengues fazem - Uôooooooo, eu peguei, tu não!
Há uns anos atrás, por acaso, ou não, encontrei uma colega do liceu, a Lourdes Jerónimo, em Fátima. Vejam só! Naquele dia de Setembro em que os Retornados e suas famílias que já nem são, se juntam para lembrar os velhos tempos. A Lourdes que morava na Caop, ali perto do colégio da rua principal que vai para S. Paulo e antes de chegar aos Combatentes, não sei se o nome dele era Santa Maria Goreti ou Santa Teresinha, havia dois nessa rua, a Lourdes, que foi minha colega no 1º A, acabadas de fazer 10 anos, morava mais perto da avenida brasil que dos Combatentes e nunca soube que era amiga do Júlio e sua família. Vim saber disso ali, naquele domingo de Setembro, quando me disse que estava num grupo de gente conhecida. E eis que de repente, fico na frente do Júlio. Desde 75 que nunca mais o vi. Já tinha mulher e filhos crescidos. Os meus eram pequenos ainda. Afinal não foi por acaso que pegou em mim ao colo. Era mais velho…
Nunca mais fui a esses encontros. Naquele ano aconteceu por acaso. Não era fã. Encontravam-se sempre os mesmos, no mesmo lugar, como guetos criados para se tornarem mais fortes. E o grupo de milhares de pessoas com o mesmo propósito, recordar Angola, matar saudades, reencontrar pessoas, subdividiu-se em células pequenas e fechadas. E eu não gostava de ir. Não pertencia a grupo nenhum. A minha turma estava lá na banda. Os meus amigos ficaram lá. Os que estavam cá também não iam. Mas nesse ano que encontrei a Lourdes e o Júlio, encontrei o padre Luís, meu confessor, na igreja de s. Paulo, a pessoa que me deu catequese e contou a estória do Pinóquio. E santinhos com a oração respetiva e senti-me abençoada por Deus, tal a alegria. Até me apeteceu cantar, quando vou para a gandaia caminho assim, assim, assim…
Sou pessoa para gostar da gandaia. E a pensar nisto é que hoje senti falta do meu chão, minha avenida, meu porto seguro, minhas pessoas, minha canção…quando vou para a gandaia…caminho assim…assim… assim…
Desse tempo ficou-me a canção e dentro dela, emoções e profundos sentires.
- Onde vais Clarita?
- Vou buscar á Diáana ná pádária …quando vou para a gandaia, caminho assim, assim assim…
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