quarta-feira, 11 de julho de 2012

encontro


- Clarinha, lembro-me tantas vezes do relógio, ( e faz um gesto com as mãos, onde se adivinha a campânula do relógio )  que o teu avô tinha lá em casa, parece que o estou a ver…- Com a campânula, digo eu completando e sorrindo perfeitamente enlevada com esta lembrança que afinal não é só minha. É uma relíquia haver gente que mantêm na memória, as nossas memórias verdadeiramente sagradas  e que mantemos intocavelmente guardadas. 
Roubaram-no. Em 75.   A Maria João está baralhada. Pudera. Passaram  57 anos desde que o relógio foi oferecido  aos meus pais como prenda de casamento. Na verdade, ela conhece o relógio da casa do avô Carvalho pois foi lá que  a festa de casamento aconteceu e  que eles viveram uns tempos. Foi lá que nasci…
A Maria João é a par com a Lisete a amiga de infância mais antiga. Aquela que estava lá quando nasci.
A Maria João quando era pequena fazia jus ao nome. Maria rapaz, saltava e corria em cima de muros, tinha sempre a mão pronta para distribuir tabefes, fazia trinta por uma linha. Era brava como as piteiras da nossa terra. Está na mesma? Bonita igual.  A mesma expressão, com um acrescento de rugas da vida. Mais serena. É o tempo…
- Estás parecida com a tua mãe. Tal e qual. Disse-me o único amigo do meu pai, amigo do peito, que permanece vivo. Tem 84 anos e foi vizinho e amigo de casa. Da minha casa. Pai da Maria João.  O senhor Belmiro…
- A oficina era pegada com o quintal do teu avô. E eu e a tua mãe conversávamos muito no muro. Eu já era casada e ela era uma menina. A tua avó já tinha morrido e eu via o teu pai entrar e dava-lhe conselhos. Éramos da mesma idade mas eu já tinha a Maria João e o Néné.
O teu avô não queria que ela namorasse com o teu pai. 
Um dia, ela disse-me: Ando agoniada. Não sei o que é que tenho que não me passa. Sorri e disse-lhe, passa, passa, Celeste, ao fim de nove meses. 
- E nasci eu…disse, rendida pela narrativa. Derretida com a paixão duma menina de 18 anos por um homem de 28 ( era por aí, a falta de aprovação do avô a esse namoro ).
Abracei a Arrelésia. Sempre a tratei assim. É o seu nome. Está bonita como sempre. Era uma menina também, quando casou com o Belmiro. Tinha 14 anos. Ele 22. É a mãe da Maria João.
- Clara…, filha, meu amor…
Este é o Néné. Meu companheiro de brincadeiras. Tão kandengue, mas tão kandengue que se perdeu no tempo, nas curvas do tempo a nossa vivência dessas manhãs e tardes longas da infância. Subitamente vi-o gritando em cima do muro ( sempre em cima dos muros, ele, a irmã, a Lisete, eu…) com um pé cheio de sangue. Um caco de garrafa que se espetara no pé descalço ( sempre de pés descalços, desafiando os vidros e pregos que existiam nos terrenos baldios, muitos naquele tempo, a que chamávamos lixeiras, e não nos enganávamos ).  Um corte em semi-círculo. Fundo. Que o fazia gritar de dores e dizer asneiras. Muitas. Todas as que sabia e sabia-as todas. E eu e a Lisete olhando e rindo. E ouvindo cada vez mais xingamentos.  Como a Maria João, o Néné era bravo. E nós gostávamos de o destratar chamando – russo de mau pêlo quer casar não tem cabelo – fugindo de seguida, claro está. Também a Lisete e eu éramos bravias. Angola tem bravos e bravios filhos…
- Ainda te lembras, filha? Eu tenho uma cicatriz até hoje. E sorria para mim com um olhar perfeitamente agradecido de fazer parte das minhas memórias.
Lembro-me de irmos para as mulembeiras do teu quintal apanhar pássaros, que tempos aqueles…O Néné é irmão da Maria João e filho da Arrelésia e do sr. Belmiro. Tenho diante de mim uma família que morou junto da minha família. Visita de casa. De festa de casamento e baptizados. Do dia a dia. Gente que tratava os meus pais por tu. Que comia com eles à mesa. Que ria com eles e entristecia também. Eles, os filhos brincavam comigo. Éramos uma família, desabafa a Maria João. E depois a Arrelésia e o Belmiro e o Néné. Lembras-te? Lembram-se?  Foram as palavras de ordem neste encontro, domingo passado. Não na avenida brasil. Não no Largo Camilo Pessanha. Não num qualquer restaurante de Luanda. Em Lisboa. Com todos os que tinham de estar, para ser perfeito. Ausentes e presentes. Todos se sentaram à mesa. Uma mesa de onze pessoas, porém acompanhados fomos, da mãe, do pai, do avô Carvalho, tio Augusto, tia Fernanda, avó da maria João,  Nelas e sr. Mendes, padrinhos do mano Zé, do Carlos e do Jorge, da Lisete, da Laura, do Quinito, D. Justa. Lilinha, D. Lídia, D. Rosa, Odete, sr. Estevão, os Cunhas, Carlos Alberto, Fernanda Bandeira, e tanto outros. Uns vivos outros não.  
O encontro foi marcado na Expo. O Armindo ligou-me a perguntar se queria que passasse aqui no Olival Basto para me apanhar. Claro. Mora perto. Gosto do Armindo como irmão. Quando me chama filha, sinto-o verdadeiramente família. Como se não fizesse ainda parte da primeira linha à chamada para o juízo final. A proteção de quem tem alguém por de trás, como estão os irmãos mais velhos, os tios, os pais, os primos mais velhos. No caminho, já depois do túnel do Grilo o Luís ligou. Esse é outro igual.  Já estava à espera com o irmão, o bangoso doutros tempos. Namoradas eram mato…atendi eu o telefone do Armindo, a pedido. Num ápice, estávamos a abraçar uns e outros. A reviver tempos idos. A almoçar todos juntos. De novo…
E a páginas tantas soube que o Armindo aprendeu a assar castanha de caju e jinguba com o sô Santos. E a fritarem peixe em óleo de palma, ( Armindo, Américo e Luís ) só não se entenderam quanto ao peixe, se era espada ou carapau ou ambos. Ainda soube  das mulembeiras do meu quintal , afinal três em vez de duas como eu supunha na minha lembrança tão antiga, e que me fez dizer a caminho da Barra do Kuanza ao meu amigo como irmão, Edgar quando da súbita aparição de mulembeiras que já não via há quase 4 décadas que – Eu vivi numa casa que tinha mulembeiras.
As lembranças foram-se desenrolando como se desenrola um rolo de linhas onde o nosso destino já se teceu e cumpriu em parte, a melhor parte da nossa vida.  Contaram que as mulembeiras albergavam pássaros e ele os outros corriam os ditos à pressão d’ar. 
Que o avô Carvalho ouvia a rádio brazzaville, que jogavam  hóquei em campo em frente à minha casa, e tantas outras estórias. Umas  que eu não sabia, outras já não lembrava. Outras ainda que me povoam a memória e que tenho como já disse, como sagradas.  
É nestes encontros sem filtros, medos, preconceitos, vaidades, remorsos, culpas, que percebemos a importância da vida, da lucidez, da sobrevivência. Da amizade. 
É nestes encontros de saudade e muito amor, que Luanda se faz presente duma forma inequivocamente poderosa, marcante, maternal. 
- Já não tenho saudade da Luanda que deixei em 75. Já não tenho contas por ajustar, disse, à perguntas feitas por já ter voltado nos novos tempos. Na Angola independente.
Hoje quando volto a Luanda tenho um prazer imenso de voltar à Luanda que deixei o ano passado. Há uma saudade permanente em mim da terra que eu deixo a cada ano que volto para Portugal depois de lá ter estado. Olharam-me num misto de incredulidade e admiração. 
Como geri eu isso? Naturalmente. Luanda é a minha terra. É tão simples quanto isso. 
O Armindo, o único que voltou depois de 75, em 84, disse:
Avisaram-me que ia sofrer um choque muito forte ( acredito que em 84 fosse complicado ).
Eu ia apreensivo. Mas quando o avião começou a descer sobre Luanda e eu olhei, pensei:
Poh, esta é a minha terra…
A minha alma abraçou a alma do Armindo nesse momento mágico. Aqui está alguém que percebe exactamente o que eu sinto. Sente igual…
Foi assim o meu encontro com o passado mais longínquo junto ao Tejo duma Lisboa que eu amo. Domingo fui mais eu. Domingo consegui tocar os pequenos céus que desenho aqui deste lado da vida e do lugar, com as as palmas da mão. 

 

1 comentário:

Anónimo disse...

É bom reencontrar gentre linda e amiga,