domingo, 15 de julho de 2012

É domingo


É domingo. Acordei cedo. Será que vai ficar sol o dia inteiro? Aka! Está muito calor. Vou tomar banho d’água fria.  Descobri um sabonete que cheira bem e deixa um perfume kuioso na pele.
Gosto de tomar banho, à noite, no cacimbo. E entrar na cama a cheirar bem. Sim porque agora mesmo que me banhe a toda a hora, estou a limpar-me e já estou com as costas e  a nuca, a escorrer suor dessa humidade do ar. Mas se não fossem os banhos ia ser como? Desde que descobri esse sabonete que ainda é mais kuioso tomar banho, e ficar, ficar no chuveiro a sentir a água a levar a espuma que o sabonete novo faz. O nome dele é Musgo. O papel é verde. É só meu. Ponho na saboneteira, tiro da saboneteira. Arrumo no meu quarto. Não gosto de dividir, nem sabonete, nem desodorizante, nem perfume. O pai usa Lifeboy mas eu não sou fã do sabonete encarnado. Cheira a desinfetante. Também não gosto do perfume da mãe. Bien-être. Todas as mulheres que conheço cheiram a bien-être ou lavanda. Cheira só a lavado e a primavera. Sei lá o que é primavera. Quando andava no colégio tive de adivinhar. Para fazer as redações. Eu era barra nas redações. A que mais gostava era sobre a família, o cão,  a praia, e D. Dinis. Vai-se lá saber porquê.  Tinha-as na ponta da língua. Recebia sempre Muito Bom ou Excelente, a caneta vermelha. As estações do ano também me mereciam uma nota boa. Aprendi que a primavera  é quando acaba o inverno. Diz que chove, faz frio, cai neve, até já vi nos postais de Natal que chegam de Paris, que a tia Olívia manda ao avô e inclui votos para toda a família. Até que deve ser bué da bom. Bué fino, três chique, ir ver a neve à Serra da Estrela e fazer ski como essas senhoras  todas estilosas, a Fatinha diz que são da alta sociedade. Nunca percebi muito bem o que isso é. Sociedade fazia eu quando andava no colégio. Metade do pão com fiambre para mim, metade para a Lourdes e ela ficava com metade de pão com margarina vaqueiro e dava-me a outra metade. Isso sim é que era uma sociedade. A mãe dizia que eu ficava a perder. Se o teu pai sabe, Maria Clara…Também o avô fez uma, mas o sócio enganou-o e desfizeram a dita sociedade, e as casas geminadas que construíram foram divididas; o avô ficou com a dele e o sócio teve que vender a sua. Aqui se calhar o avô ficou a ganhar.  
Mas a Fatinha diz que, por exemplo, a madrinha de casamento do pai sô Santos, a  Mimi Rodrigues, filha do ex-patrão, aquela que usa lenço na cabeça apertado no queixo quando passa na avenida no seu triunph spitfire descapotável, para ir dá aulas de inglês, essa é da alta sociedade. Não sei. O que eu sei é que gostava de viajar para uma terra que tivesse inverno e neve e tudo. Andar de casaco comprido e botas até ao joelho. Aqui ,só a São do Necas caçador é que usa botas, mas é para a banga. Botas brancas. A São é bonita e sabe. E os homens sabem também porque quando ela passa a mexer as ancas na sua bota branca, mexe com todos, até com  as mulheres da idade dela que parecem umas velhas abanam a cabeça e … nome do pai do filho, do espírito santo, olha só p´ra ela, julga que está num cabaré ou quê? E de boca pequena dizem – é uma rosqueira. Eu olho e penso que um dia vou ter umas botas brancas…não sei se vou ser assim como a São, mas um dia, podem-me excomungar que eu não quero saber, já não quero mesmo, quando vão queixar ao pai que tenho as unhas pintadas de cor de rosa, vejam só, cor de rosa ainda se fosse encarnado.
Até que deve ser bué da bom vestir casaco comprido. Dá-nos importância. Então se for como os modelos da Burda, onde a D.  Batista se inspira para fazer os vestidos às clientes! A D. Batista é a modista que ajuda a vestir o mulherio da Vila Alice. Quer dizer, as mulheres e raparigas da Vila Alice que  conheço e que vão à da loja do pai. Aposto que essas modelos do Burda que vestem casacos compridos, usam botas altas e não usam nem Bien-être nem Lavanda. Aposto que usam os perfumes dos frascos de vidro da drogaria do Rabeca ou daquela ao lado da Paladium, nos Combatentes. Onde eu vou com um frasco vazio de…bien-être, lá tem de ser, para encher uma medida ou duas daquele perfume que fica quando nós passamos, como as botas brancas da São ou as suas ancas a mexerem. Gosto de cheirar dentro daqueles frascos enormes, com rolhas de vidro enormes também. Disseram-me que era perfume de velha. Se é de velha, não sei. Cheira bem. Comecei a comprar esses perfumes com as minhas vizinhas. Elas percebem até das marcas. Tem Chanel 1,2,sei lá mais quantos, tem muitos, mas o que eu gosto mesmo é de Marlene. Dá-me uma importância! Lembro-me da madrinha do sô Santos, da D. Zita e da dona Dina, da ex-namorada, ex-mulher do primo Fernando, a Emília, Emilinha para nós, que usava saia travada acima do joelho e tinha umas unhas enormes e vermelhonas e as mulheres da rua diziam que fumava e tudo. Quando eu for da idade dela também quero ser assim. O primo Fernando teve sorte, teve uma namorada bonita e fina. Da alta sociedade. Será? Tenho dúvidas quanto a esse título.
Está calor. É domingo e o pai ontem à tarde disse que íamos passar o dia à praia. A mãe acordou cedo para fazer o arroz de frango que vai embrulhar em jornal para estar quente quando chegarmos. Depois do banho da manhã. Matou um cabrito e foi assá-lo no forno da padaria Independente. Gosto do pormenor dos raminhos de salsa em cima das batatas. E sentir o cheiro do assado. O nosso tabuleiro é o maior. O pai é o único homem que está a tomar conta dos assados. Bom dia sô Santos. O que é que fez hoje? Ah vai para a praia!
 A mãe nunca vai ara a padaria. É flor de estufa. Em casa, fazendo o seu papel. Sô Santos gosta de mandar, de orientar, de decidir e de fazer também. Bom cozinheiro que eu sei lá. Eu não sei senão estrelar ovos e fazer pastelões com salsa e chouriço. A mãe bem que me quer ensinar a fazer sopa. Sopa? Eu nem gosto de sopa, aprender porquê?
Acompanho sempre o pai nas idas à padaria. Gosto do cheiro da farinha e dos assados. Há quem faça bolos secos e ponha no forno da padaria, aproveitando. A pá que leva e trás os tabuleiros é maior que eu. Duas ou três de mim. O padeiro, que usa uma boina na cabeça e um fato de balalaica e calções e calça sandálias de pneu, escorre em suor. Não cheira a catinga. Cheira a farinha.
Estou nervosa. O avô mandou dinheiro no Natal e eu fui à baixa comprar um fato de banho. Quer dizer, um biquini. Todas as minhas colegas do liceu e amigas usam. Está na moda. Experimentei vários do Espelho da Moda; escolhi a cor e o tamanho e paguei com o meu dinheiro. Encarreguei a mãe de lhe dizer que  ia vestir um biquini como as filhas dos amigos dele. Ela disse-me que ele não ia gostar. As filhas dos amigos são as filhas dos amigos e ele não manda nelas. Que pouca vergonha Maria Clara, vais ver que ele vai dizer-te que se o vestes levas com o cavalo marinho. E não há praia para ninguém. Não queres isso pois não? Não, não quero levar com o cavalo marinho, mas se isso fizer com que eu vista o biquini…seja.
O cabrito está pronto. O arroz de frango embrulhado e as postas de bacalhau albardadas. Para que é tanta comida? Eu até comia só batatas fritas com frango e salsichas. Até a câmara d’ar para nadarmos, já está na varanda. As mantas também.
O primo Fernando buzina lá fora. No seu Ford Taunus amarelo e preto. Grande estrilo. Quando vamos os dois passear para a Ilha, as garinas olham e pedem boleia. Depois vêm-me e encolhem os dedos rindo envergonhadas. Eu sou uma espécie de irmã candengue do primo Fernando. Ele deixa-me fumar e até me dá cigarros. E põe o Nelson Ned a tocar , o que é que você vai fazer domingo à tarde O primo Fernando é daqueles que fazem parte do grupo que diz que pegaram em mim ao colo, mas só têm mais 10,.12 anos que eu.
Chegou a hora da mãe dizer ao pai que tenho fato de banho novo. Parece estou a ouvi-la já:
Ó Santos, a mãe nunca tratou o pai pelo nome próprio, também, só o nome que a mãe dele, a avó Clara lhe colocou – Leopoldino. Coitado do pai. Nome feio, é esse! A mãe não deve gostar porque sempre ouvi dizer – Ó Santos…Ó filho… Leopoldino nunca.
Ó Santos, a miúda comprou um fato de banho com o dinheiro que o meu pai lhe deu no Natal e quer vesti-lo hoje.
Parece que a estou a ouvir. Ó Santos…
Então que o vista, respondeu ele. Parece mesmo que o estou a ouvir.
Mas olha que é dos modernos. Daqueles que lhe chamam biquinis.
Pronto. Estava dito. Coitada da mãe…
É domingo. Está calor. Vamos para a praia. Como sempre, o meu fato de banho azul e branco, pareço filha de marujo. Só me falta fazer a continência.
Faço sim, asneiras com os dedos, ensaio desaforos, deito lume pelos olhos, estico o lábio num beiço bué da grande e remeto-me ao silêncio absoluto. Deitei umas lágrimas rosto abaixo, quando o primo Fernando me perguntou: Então, vais estrear o biquini ou não? Nãaaaaaaaaao. Ele ri-se. As amigas dele que vão ter connosco à praia usam biquini bué decotado e atrevido e fumam e tudo.
Queria fuzilar esse sô Santos, bem feito que lhe puseram um nome tão feio, Leopoldino, pzxxx. Um dia vou-me vingar. Juro que quando eu mandar ele vai ter de me gramar de biquini e a fumar. Juro sangue de Cristo!
Agora quero mesmo é chegar à praia. Olhar as ondas.
Atirar-me nelas e ser feliz.

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