segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

caminhando no interior de mim

Lusco fusco e eu precisando de ficar no alto da cidade para umas compras para alimentar aquele ser pequenino que vive comigo. Que por acaso no campo da exigência é top. Não fosse isso e iria para casa direitinha.
O frio quase fere a alma solitária neste fim de tarde.
Doi-me a cabeça. Tenho as mãos geladas num desconforto pouco habitual, uma vez que costumam estar à temperatura do resto do corpo num prazer que sei que a maioria não tem.
Mãos frias, coração quente, amor para sempre. Mãos quentes coração frio, amor vadio... Vadiagem parece que tem tudo a ver comigo. Mas não tem.
Neste fim de tarde vagueio pelo passado quase inevitavelmente. Caminho já no sentido de casa. Devagar. Porque não tenho pressa. Nada me espera. Quer dizer, uma casa cheia de nadas que falam de antigamentes.
Enquanto avanço somando passos, descubro que as ruas, os becos, as esquinas, gritam silêncios. Não passaram muitos anos e pelos mesmos caminhos apelava-se ao sossego. Hoje caminho no meio do deserto que se fez de partidas e abandonos. Passo perto de casas onde viviam rostos que sorriam diariamente saudando-me. Lembrei-me da Ana. Há anos que não a vejo. E da mãe dela. Porque será que me ocorre este sentimento estranho de saudade?
Nesta terra nada me acontece naturalmente. Há terras assim. Que nunca nos tratam por tu. Nem nós. Sempre num pé atrás que gato escaldado de água fria tem medo. Estas pedras de calçada, estas paredes antigas, estes candeeiros, estas janelas fechadas, escondem tantas lembranças de todos...minhas também. Porque é que estou eu a mexer no que não devo? Porque razão o passado não fica lá atrás? Já passou, é assunto arrumado. Remediado por não ter remédio. Mas quem me mandou percorrer ruas do meu duvidoso esquecimento? O inverno que se aproxima. O Natal que este ano devia ter sido em Agosto. A falta de pressa de chegar a casa. O estado de espírito. Os olhos de ver para além do que existe. O coração melancólico. A cidade que partiu e que reconheço cada vez mais distante.
Passo junto à rua onde vivi durante os primeiros anos. E sinto um aperto no peito. As lojas, as tascas, fecharam. Os primeiros andares das lojas já não são habitadas. O centro está abandonado. Onde era uma sapataria é hoje um gabinete de solicitador. Onde era uma armazém de tecidos é uma loja de chineses. Onde era uma ourivesaria é um banco. Onde era a galinha gorda ( loja de trezentos ) não é nada. Entro numa loja e duma penada vejos duas pessoas do antigamente. O Carlos da s.s.. Já uma vez o vira e ele sentira-se pouco confortável e não me falou. Passaram uns anos. Não há razão para evitar o inevitável. Gostei que me tivesse falado. Perguntámos pelos meninos. Trocámos votos de Boas Festas. Depois e surpreendentemente a Ana apareceu-me à frente. Conheço-a desde que era miúda e acompanhava a mãe na limpeza do edifício onde trabalhava. Houve um período longo que a via todos os dias. Ia crescendo e tornando-se mulher. Já tem um filho fazendo o mestrado dum curso qualquer, em Coimbra. A mãe está boa. Perguntei por ela. Há coisas que já não me espantam. Pensar em pessoas e elas aparecerem-me costuma acontecer. Quando elas se enquadram no campo das possibilidades fáceis de serem possíveis, naquela coincidência em que não acredito mas que todos lhe chamam assim. Saio da loja e o meu horizonte é o fim da rua. Fosse mais longe e havia pessoas em quem pensaria, fechando os olhos com força numa atitude de muita fé para que por estranho e desejado acaso me aparecessem à frente numa impossibilidade transformada em milagre.
Milagres! Queria eu alguns. Coisa pouca e pouco interessante para outros mas de importância vital para mim. Milagres! Embrenhada em pensamentos de ir aqui e acolá já devia ter aquecido, com eles e com a marcha um pouco mais apressada. A noite está gelada. A rua das lojas está iluminada. Os comerciantes devem ter pago para as velas, os sinos, os anjos e os pais natais cintilarem entre amarelos, vermelhos, azuis e verdes. Invade-me uma sensação estranha. Entre o conforto e o espanto. Reconheço muitas pessoas que por mim passam. Boa noite Clara. Boa noite dona Clara ou simples aceno de cabeça e um sorriso como fez o dr. C. Marques que ia acompanhado de mais quatro camaradas. Tenho um respeito profundo pelos comunistas da cidade. Conheço-os, conhecem-me, pode dizer-se que bem. De festas do 25 de Abril, 1º de Maio, da esplanada da avenida, das manifestações, de funerais, do desporto, da cultura e das artes, do trabalho, da proximidade. São honestos. Os mais honestos. Idealistas. Educados e diferentes na política do concelho. São da velha guarda. Sorrio para o doutor e para o espanhol como é conhecido. Pai da Cristina. Confio tanto neles que quando afirmam algo, tenho a certeza de que é verdade. Gostava de ver a câmara, comunista. Estas pessoas merecem. Aquece-me o coração o cumprimento destes homens que caminham apressados. Ainda há gente boa. Sinto-me menos só. Passo a ponte. Olho o rio de águas negras e prateadas pelos candeeiros. Olho para a avenida que se aproxima e ao meu lado duas iguais a mim. Assusto-me. Com a sombra a duplicar na calçada. Acho que nunca percebera que posso ser três. Duas caminhando à esquerda de mim. Às vezes penso que sou muitas. Outras que não existo e apenas sou fruto da minha imaginação. Volto a sentir medo. Estarei louca? Espero que o semáforo mude para verde e atravesso a rua direita à casa do mano Zé. Não costumo aparecer por dá cá aquela palha. Mas hoje deu-me para aqui. Talvez o frio que me vai na alma. E o natal para combinar.
Interrompo os pensamentos e as lembranças quando a porta se abre. Volto a sentir-me a de sempre. No presente.

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