quinta-feira, 5 de abril de 2012

diário de férias



Saio de casa decidida a atravessar a ponte que me levará se eu quiser, para a Póvoa de Stº Adrião à direita e para Odivelas à esquerda. No fundo da ponte, uma travagem é o aviso para estar atenta mesmo se atravesso na passadeira. Olho para o Senhor Roubado e os seus 3 ou 4 prédios, não mais,  foi suficiente para fazer do lugar uma estação de metro. A penúltima da linha amarela. Agora que o custo é o mesmo com certeza a ponte que une as duas estações, em hora de ponta, não congestionará, nem os automóveis no parque se aglomerarão do mesmo jeito. Haverá quem possa sair de casa a pé para o metropolitano na estação de Odivelas. Meço com o olhar métrico que sei ser bastante assertivo, e sei  porque em tempos, quando trabalhava na sala de audiências, nos julgamentos de processos de terras e extremas e marcos e passagens era comum uma testemunha  falar em metros  tomando como comparação o comprimento da sala de audiências e estar completamente fora e eu fazendo o mesmo raciocínio no meu olhar métrico, falhava por pouco. 
Olho a estação de Odivelas e meço as distâncias. Não há dúvida. Está ela por ela, mas gosto bem mais deste percurso. Sempre a direito. Faço a ponte e zás. É um ver se te avias a caminho da estação. Rua larga, movimentada,  passeios largos, sem casas, muito arejamento. Outras pessoas. À noite, menos inseguro.  Ainda não o fiz sozinha mas já o fiz acompanhada. E não estou enganada. 
À porta, um africano com a sua venda de artesanato estendida no chão. Um vendedor ambulante do lado esquerdo vende cintos e malas. Bolsas de mão. O indiano " quê frô " oferece-me uma rosa vermelha que rejeito. A menina do quiosque à coca do que se passa, espreita a rua através das revistas e jornais. Olho-a e ela disfarça. Ou não. Pode ter sido coincidência.
Tiro o bilhete e subo. Que sorte. De novo o metro parado à espera do seu tempo para iniciar a viagem. Linha amarela. Que vai para o Rato. E me há-de deixar no Marquês. Quem gosta de desdenhar os subúrbios diz que a linha amarela é ralé. Como os suburbanos. Eu não acho. Mas eu sou suspeita. Sento-me. O único ocupante de um espaço de dois bancos, virados um para o outro, descruza as pernas quando me sento mas cruza-as de novo quando percebe que não vou sentar-me de frente p'ra ele. Olha-me de alto a baixo. Olho-o no rosto. Desvia o olhar e tranca a expressão. É pessoa de 30 a 35 anos. Coloco os fones e ligo o MP4. Aos poucos vão chegando outras pessoas. Cruzo as pernas para voltar a descruzar de seguida. Uma mulher senta-se em frente a mim. Cabelo encaracolado preto, com as raízes brancas. Só as raízes. Com um ar lavadinho. Tranca a expressão. O metro começa a andar. Depressa vejo o Olival e o Senhor Roubado. Quase dá p'ra ver a minha rua. O prédio azul do Mulemba'Xangola lá está. A Mizé e a tia Helena também lá estarão na sua faina, certamente. Grande piroseira, o único condomínio fechado dessa terra, pintado de azul mar e  céu. Quem teria sido o iluminado? De facto, olhando de longe e d'alto dou razão a umas alminhas que dizem que o Olival não é nada. Quer dizer, nada, nada é exagero, pois é freguesia, mas por pouco tempo mais. Vai na leva como vão as outras. E deve pouco à beleza. Um amontoado de prédios dos anos 60 e 70, perfilados e entre eles ruas paralelas e perpendiculares. Nos passeios, palmeiras, laranjeiras e ameixoeiras, uma igreja, um rinque para desporto e  lojas. Duas agências bancárias. Uma delas foi assaltada e virou notícia porque fez reféns. E tem escola. Nem cemitério tem. Ah pois é. A igreja tem casa mortuária. Eu que o diga que quando assentei arraiais por lá, muito me custava chegar à janela e ver à porta criaturas vestidas de preto, carpindo o seu desgosto ao longo da noite. Mas pior que isso era ver a porta aberta e quase perceber o morto deitado no caixão ali à distância de...quase nada. Agora isso não acontece porque para além de terem sido feitas obras, os vivos não querem velar os seus mortos noite fora e fecham-nos e levam a chave para voltarem depois d'um belo sono.
Estou com os meus pensamentos quando percebo que o homem da frente fala com a parceira do lado. Ela não me parece querer alimentar conversa. Olha-me como que a pedir socorro. Socorro pedia eu se tivesse lata para isso, abalroada que fui por uma mulher gordíssima que abriu asas e poisou o braço direito na minha cintura com alguma predisposição para me expulsar do lugar que paguei e com a sua coxa a tocar a minha num despudor gordurento que me revolve as vísceras. Ainda não chegamos ao Campo Grande e esta mulher é criatura para tomar posse dos dois bancos até ao Marquês sem sequer pestanejar tendo tido em mente que ao carregar o seu cartão não comprara um lugar mas um metropolitano inteiro.
O casal da frente, sim, porque enquanto eu mentalmente tecia estas considerações acerca da gorda do lado, o casal da frente teve tempo para iniciar o que pode ser um franco e alegre flirt a avaliar pela cara dele sorrindo descontraidamente e o derretimento dela. Deixei de lhes prestar atenção, quando no Marquês me levantei ao mesmo tempo que o homem que sem pestanejar abandonou o lugar sem sequer se despedir da rapariga nem tão pouco olhar para trás. Como é que pode? Já esfregava as mãos de contente por estar a assisitir ao início de um romance e eis que subitamente ele estragou tudo. É assim. Quase sempre eles estragam tudo.  Acho que ela pensou a mesma coisa a avaliar pelo rosto de desilusão com que ficou. Deixei-a e saí direita ao elevador. Já não me apetece fazer as escadas e se por enquanto o elevador funciona, porque não? Prático, e rápido depressa me pûs no andar de cima. Ia para o Terreiro do Paço, logo teria que apanhar a linha azul. A passadeira que faz par com outra de sentido contrário está avariada há muitos meses. Acho que vai ficar assim para sempre. As escadas rolantes que descem ao metro, também. 
Imagino um idoso ou  pessoa com deficiência a descer as escadas e indigno-me. Mas tenho de parar com as indignações pois já basta o que basta e que me toca pela porta.
O metro demora a chegar cerca de 2 minutos. Sento-me num lugar completamente vago. À minha frente senta-se um homem cigano, mais velho que eu, pois tem muitas mais manchas na pele do rosto  e muitas mais rugas. Veste a preceito, fato com gravata e exibe um troley. Não tira os olhos de mim e isso aborrece-me. Porque não fixa um ponto no fundo do metro, fingindo estar a observar algo alheio a mim? Assim que a gravação anuncia Terreiro do Paço, levanto-me e encosto-me à entrada, de costas para a criatura. O resto da carruagem vai vazia não fosse uma mulher muito bem vestida, cabelo comprido impecável, lábios pintados de castanho, bonitos, que me olha. Olho os seus olhos e reconheço-a. Clara Pinto Correia. Minha xará. A  professora, bióloga e escritora que também cresceu por terras de Angola, irmã da outra, a Margarida,  que por sua vez é casada com o Luís Represas, que bem, há quem não diga maravilhas da sua, dele, personalidade, mas eu é ver para crer, como São Tomé. Esta mulher de metro, na linha azul a caminho de Santa Apolónia...muito bem. Calha a quase todas. Mas nem todas têm a sua classe. Um pouco mais velha que eu, está giríssima e bem cuidada e se eu fosse um homem baboso diria que ainda rompendo meias solas, ou melhor, as solas todas. De facto a mulher está com tudo.
Se não fosse cá por coisas tinha umas coisitas para lhe dizer. Pois que esta senhora desiludiu-me e muito. Tinha-lhe simpatia e admiração. Comprara até os seus livros e eis senão quando uma escandalosa notícia denunciando  plágio a dois textos da revista New Yorker me deixou incrédula e furiosa. Porque me fizeste tu isso Clarinha? Era praticamente o mesmo que descobrir que Mia Couto não era autor das suas frases, de trechos dos seus belos livros. Menina feia,  como foste capaz de desiludir uma tua fã? Tinha-a ali mesmo à frente do meu nariz  e apeteceu-me deitar-lhe a língua de fora, fazer-lhe asneiras com os dedos num na-na-na-na-nã, toma toma, de vingança, por em tempos ter ficado tão amargurada por sua causa. Ao invés disso, saí direita à Praça do Comércio. Às 2,30 anda por ali muita gente. Muitos turistas. E atravessam para o Cais das Colunas e tiram fotografias e sentam-se nos bancos de pedra...
Olhei para lá. Vi uma mão dizendo adeus. Não há nada a fazer. A nossa gente, é a nossa gente. Estejam onde estiverem damos com eles mesmo que seja como agulha no palheiro. Abri os braços, brincando, como se há muito tempo não nos víssemos. Ainda não tinham passado 24 horas da última vez. Sorri. Diz-me que eu sempre que a vejo sorrio. Faço jus ao mexerico. E acaba aqui a minha viagem. 

2 comentários:

maria disse...

Gosto das tuas histórias, das viagens e das fotos que colocas no blogue.
Como se fossem capítulos de um livro que me mantêm presa e não quero que termine.
Para quando Clarinha esse livro?

Maria Clara disse...

Para quando????
Aqui está o velho problema.
Edição de autor exige custos e eu não vou nisso. E depois...quer dizer, qual é a editora que quer estas historietas da carochinha de alguém que não tem nome nesse mundo?
Nem sequer sou " famosa ", amiga.
Ahahahahahahahah...ficamos assim que ficamos muito bem que o meu umbigo cada vez vai mirrando mais, com a idade. :((