sexta-feira, 6 de abril de 2012

sexta-feira

foto tukayana.blogspot
Ela olha a rua com atenção.
E desce para o sofá. E enrola-se num novelo.  
Se ouve um ruído, assusta-se. E foge. Bate com a cabeça na cómoda da entrada. Tenho a mania das cómodas. Dão arrumação. É por isso. Esta não tem abertura fácil e por muito que se pintasse de encarnado, porque me ocorre o encarnado? Por muito que se pintasse de verde, azul ou às bolinhas, ela conseguiria abrir as suas gavetas.
Ela conhece os cantos à casa mas age como convidada. Abusada. Vem cá uma vez por outra. Esta não é a casa dela...
Cheia de truques corre  as divisões à procura de um lugar a que chame seu, com propriedade. Numa posse de gata siamesa. O único quarto que a seduz está fechado. No trinco. D'outras vezes faz travessuras que complicam a logística. Sobe para o guarda-vestidos. É preciso apelar à imaginação, armar em bombeiro para a socorrer. Mete-se dentro do guarda-vestidos. E sobe à cómoda. A decisão mais acertada sem dúvida que é selar o quarto. Não é p'ra mim nem p'ra ela. Não é p'ra ninguém. Impedida que fica de o tomar de assalto, anda ao acaso pela casa, cheirando tudo o que encontra. Foi ter comigo à cozinha. Estava a estrelar ovos caseiros; hoje não se come carne. Subiu à bancada e pôs-se ao meu lado. Acabados de os colocar no prato, lampeira foi cheirar. 
-Tu queimas-te Pitanga. Dou comigo a falar-lhe como se acreditasse que teria a ousadia e a estupidez de lhes tocar quando ainda ferviam. Dou comigo a falar-lhe como se fosse gente. Pequena. Como se fosse mãe...
Fiz limonada que adocei com mel. Poisei a jarra. Veio cheirar. Mas não tocou. Ri-me p'ra ela e ela olhou para mim inexpressivamente no seu olhar azul maravilhoso de um azul celeste puro que me deslumbra. Dou com ela a olhar p'ra mim inúmeras vezes. Mais do que os humanos. Na verdade para que quero eu que olhem p'ra mim? Poucos são os que sustentam o olhar. Fossem como a Pitanga e se calhar era eu que de vez em quando desviava o olhar. Não é todos os dias que nos enfrentam...ocorre-me  o Prenda. Um cão esguio e bonito que foi assim batizado porque chegou-nos vindo do bairro Prenda. Não só nos olhava como ria mostrando a dentuça até às gengivas. 
Começa a chover. Parecem morteiros, parece que o prédio vai ruir de um momento para o outro. Cai granizo como chuva. Em catadupa as bolas de granizo fazem-se ouvir na clarabóia. Ela, enlouquecida corre para a porta. Bate na cómoda. Porque tenho eu a mania das cómodas? Volta para trás e foge para o meu quarto. Aposto que se meteu debaixo da cama completamente transfigurada. Não é p'ra menos. Tivesse eu alguém aqui comigo e tinha-lhe saltado para o colo, tapava a cabeça e esperava, rezando a Santa Bárbara, que no céu estás inscrita e na terra assinalada, onde vais bárbara? Vou espalhar esta trovoada...parece estou na banda em dia de temporal.  E oiço o sô Santos dizer: Calem-se! Porque eu e o mano Zé não respeitávamos Jesus a ralhar. Era o que a mãe dizia: Olha Jesus a ralhar e se ela dizia eu acreditava mas ele não vinha empunhando o cavalo marinho e enquanto vinha e não vinha, o medo fazia rir, gritar e implicar um com o outro.
É sexta-feira santa. Da Paixão de Cristo, como se dizia nesse tempo, quando ia à igreja de s. Paulo com a madrinha e as filhas, Fatinha, Ana Maria e Hortênsia e todas  rezávamo e sofriamos  como condenadas como se fôssemos culpadas de toda traição que os amigos de Jesus lhe fizeram. Não gostava de ver os santos tapados com panos roxos na semana santa. Deprimia-me e achava uma violência os pobrezinhos não poderem observar os vizinhos e os devotos que iam em peregrinação rezar aos seus altares. Não gostava da imposição do peixe na refeição. Era pecado comer carne neste dia. Nessa altura os gatos tinham sorte. Comiam as cabeças e as espinhas dos peixes e tinham um banquete dos diabos. Em dia de sexta-feira santa...
Não pára de chover. Nem de trovejar. Nem de cair granizo na clarabóia. 
- Pitanga, pitangaaaaaaaa, anda cá. Faço voz de mimo a ver se ela cai. E se sente menos sozinha no pânico do temporal que caiu sobre o Olival. - Pitangaaaaa, anda cá. E a Pitanga vem. Bati no sofá a dizer-lhe para subir, como faço sempre que a olho e não está no meu sofá. E ela sobe. E vem aninhar-se no meu colo. Meia volta. Volta e meia e lá se acomoda. Mentalmnete oro. Santa Bárbara bendita que no céu estás inscrita e na terra assinalada...
Já não chove no Olival. O temporal passou. Vejo através da janela as nuvens rasantes ao monte que me separa do Lumiar. Elas vêm da banda. Quem sabe?! Vêm do mar, passam o Tejo, a Expo e vêm por aí numa velocidade parece que levaram berrida do dono das maçãs da índia do quintal da Dona Leonor. A Nona, como carinhosamente o sr. Alfeu, o homem da berrida, pai do Caty e do Edgar a tratava. Olho-as seguindo o seu destino. Na banda está sol. Calor de rachar, são as notícias que me chegam. 
A Pitanga voltou para o sofá junto à janela. Depois de espreitar a rua, enrolou-se num novelo. Tem vida de gato. Santa.Comer, beber e dormir. Esqueço-me. Ainda bem que me esqueço.  ´
É sexta-feira. Como na canção. Não é uma sexta-feira qualquer. É Santa. Na banda, aqui e em qualquer lugar cristão. Tenho p'ra mim que comer carne não é pecado. O único pecado mortal é não amar. Se não houver próximo, amemo-nos e sejamos felizes. Domingo é dia de Páscoa...

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