
Espero o metro no Senhor Roubado. Choveu à pouco. As ruas ainda estão ensopadas.
Enquanto espero, ando num vai e vem que até a mim enerva, mas pior seria se estivesse sentada. Há dias assim. Muitos...
Tenho mil coisas para comprar e tratar e sei que a memória já não é como antigamente. E estou enervada porque este é o penúltimo fim de semana para este efeito. Ainda não é meio-dia mas não tenho o dia todo por conta de prendas de Natal. Na estação do senhor roubado há pouca gente à espera. Ao fim de semana o serviço é mais espaçado e as pessoas muito menos. O metro anda quase vazio.
Uma rapariga chega perto de mim. De gorro rosa forte, jeans e ténis. Gabardine. Um livro de capa castanha na mão. Negra, num castanho que parece a cor dos malanginos.
A miúda canta algo semelhante a gospel. Gosto de gospel. Prestei-lhe atenção. Não é difícil,porque não se passa nada ali. Sentou-se e abriu o pequeno livro de capa castanha. Uma bíblia. Parou de cantar e iniciou a leitura. Indiferente ao exterior.
Observei-a e também à bíblia. Não era nova e tinha folhas marcadas com post-its rosa forte como o seu gorro.
Veio-me à memória a Julieta. Minha amiga, antiga colega do liceu. Da Vila Alice. Enfermeira na Suiça. Falei com ela a semana passada.
Tenho duas bíblias. Uma de capa castanha e que está permanentemente na minha mesinha de cabeceira. A outra de capa preta e maiorzinha, guardada numa gaveta, no meu quarto. Ambas oferecidas pela Julieta.
A Julieta é muito crente, muito religiosa, embora a sua crença não seja igual à minha. Outra Igreja, o mesmo Deus, o mesmo Pai, o mesmo Filho.
Quando estive com ela a última vez, em Genéve, quis que eu conhecesse a sua igreja. O lugar de culto onde se reune com portugueses ali residentes, como ela. E eu fui. Foi interessante conhecer o espaço, as pessoas e a religiosidade de todos os presentes. A forma como o manifestam. Fiz a vontada à minha amiga. Depois em Lausanne, no domingo de Páscoa disse-lhe que não ia. Ali não era o meu lugar. E ela aceitou. Fui conhecer a cidade melhor. Para a beira do Lago. Falei com brasileiras que passeavam e me pediram que tirasse uma fotografia. E com um oriental, para o mesmo efeito. Comprei um gelado e souvenirs.
As montanhas cheias de neve e a cidade coberta da luz do sol duma primavera quente, da alegria das diversas raças passeando-se junto ao lago imenso, deram-me a certeza , independentemente da religião, que Deus existe. No crescente de harmonia, paz, e felicidade que se atinge quando estamos tranquilos, apesar de estarmos a muitos quilómetros de casa.
Não sei porque sempre associo coisas que acontecem; objectos, frases, olhares, perfumes, músicas, dias, roupas, terras, a acontecimentos do passado. A pessoas do passado. Ao meu passado.
Aos meus afectos, amores e desamores, saudades, prazeres, medos, ódios e angústias.
Por falar nisso, não gosto de andar de metro ao domingo. Associo a solidão, indigência, minorias, e a mim. Quando punha os óculos de sol não importava se era dia ou noite, para que não me vissem chorar lágrimas de revolta, medo, desespero e profunda solidão.
Olho tudo como se isso fosse à muito tempo atrás. Mas não foi. Há três natais atrás odiava o metro ao domingo, o autocarro, torres novas, pessoas, a vida e a mim por tanto ódio ter no coração, e nem bíblias, nem religiões faziam o milagre de me salvar de mim. Só o tempo...os amigos, a Julieta, também.
Distancio-me da menina do Gospel e da bíblia, da minha amiga Julieta e dos meus ódios de estimação, para sair no Marquês. Tenho de ir para a linha da Amadora, para o Colombo.
Vou fazer as minhas compras de Natal. Sozinha. Em minha casa dorme-se. O meu pequenino Mundo ficou no Olival. Serenamente me entrego ao prazer de escolher os presentes para as minhas pessoas. Segundo o que gostam. E o que posso dar. Bem sei que é um consumismo doido este da época natalícia. Uma tradição. E eu gosto. Quase não dei por ela este ano.
Sou gente normal. De gostos normais. Igual a tantos outros. É domingo e estou viva.
A Bíblia mexeu comigo, com as minhas recordações sempre vivas, apenas guardadas numa gaveta da minha memória, algumas, outras na do coração. Hoje não vou andar mais de metro. Tão pouco de autocarro, ou comboio. Hoje irei para o tarrafal de boleia. Oferecida. Lembraram-se de mim. Telefonaram. " Clara estás em Lisboa? Queres ir connosco? Às seis no Oriente " Comoveram-me com a lembrança. Agradeço do fundo do coração. Mais uma para o rol dos gestos a que fico eternamente grata. São tantas que ainda que fosse rica, a pagar-lhes em dinheiro, não chegava a minha riqueza para tantos gestos de amizade e carinho.
Quando chegar a casa, mais logo, irei desfolhar a Bíblia que tenho no meu quarto. Como a caçula faz. Todas as noites, lê um pouco da sua bíblia, oferecida também pela Julieta.
Se calhar por isso, a minha caçula é tão resistente à adversidade. E tão tranquila e corajosa.
Vou sair na estação Colégio Militar. Para uma peregrinação às lojas. Acho que vou sobreviver...
1 comentário:
Que delícia de texto!
Gostei muito.
A.L.
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