domingo, 2 de fevereiro de 2014

A minha Angola



Quando oiço falar de Angola no passado, percebo que não beneficiei do que os demais lamentam ter perdido. Ou não falamos o mesmo dialeto, ou não falamos da mesma terra...
O meu bairro era populoso e popular. As pessoas, amigas, colegas de liceu, colegas de irmãos, irmãos de colegas, família. Vizinhos de muitos anos. 
Brincadeiras na rua. Festas de garagem e de quintal. Matiné no fim de semana. Filme em família. 
Praia quase todo o ano. Piqueniques. Passeios para fora da cidade. Comemorações. Natais, Páscoas e Carnavais.
Escola. Trabalho. Lanches na baixa. Périplo por pastelarias de fama. 
Esplanadas para uma gelado, uma coca-cola, uma empada. 
Uma subida à fortaleza para um beijo furtivo. Uma volta à ilha no fim de tarde, para namorar um pouquinho. Descoberta de prazeres, de paixão, de amores.
Jogos de futebol, basquete e hoquei. Circo. Corridas de automóveis. 
Crescimento em liberdade, na responsabilidade de respeitar os mais velhos. Obedecer-lhes. Não lhes causar desgosto nem sofrimento.
Amadurecimento. Sempre na protecção dos familiares. Companhia de amigos.
Quando oiço falar do passado, de Angola e da vida que se viveu ali, penso no meu próprio tempo e, ou não vivi, ou não me deixaram viver, ou simplesmente, outra vida não era desejada por mim, ou me foi vedada, pacata pessoa, sem extraordinários recursos, classe média baixa, pais provincianos, poupados, regrados. 
Porque ao invés de tantos, quase todos, que oiço cantando de galo, no meu diário não constam discotecas e boites. Nem barcos nem aviões. Nem jóias nem diamantes. 
Nem férias em Portugal, na África do Sul ou quaisquer outros destinos. 
Nem festas de luxo, da gravata, gente fina, sangue azul. Liamba e uisque. 
Nem ar condicionado, vivendas no Miramar, Cruzeiro ou Alvalade. 
Não fiz directas, nem dormi fora de casa, não deitei de manhã ou acordei no pôr do sol. Não comi lagosta até fartar, nem tive criados brancos, costureira a dias em casa, carta de condução, carro sempre à mão. Não gastei rios de dinheiro, que não tinha, nas boutiques da baixa. 
Não vivi nessa Angola, não. 
A minha Angola deu-me o cheiro da terra molhada das chuvadas do tempo quente. O mar azul e as ondas onde me ondulei em câmara de ar de pneu de camioneta. 
Deu-me a contemplação das salinas, das barrocas e dos cafezais. Dos coqueiros e das cubatas. Do algodão e da cana d' açúcar. 
Das lavras de milho e mandioca.
Deu-me a água de coco, o sabor das gajajas, da múcua e do tambarino. 
Macacos de galho em galho, barragens, quedas d'água, rios e lagos. Cacimbas. 
E a rua, onde brinquei descalça correndo livre e feliz; onde joguei à macaca, às escondidas e ao garrafão. 
Os terraços lavados à mangueirada, os alpendres e patins onde ficava a ouvir estórias do antigamente mais antigo que todos os antigos viventes.
Deu-me o aroma do bombô, castanha de caju e da kissangua. E a cor das acácias, o voo dos albatrozes, os papagaios de papel, os casamentos aos sábados, as missas de São Paulo. 
E deu-me o calor das tardes quentes, cor morena, conversas de amigas, temas para poemas, canções, gira-discos e transistores. 
Pregões das quitandeiras, das peixeiras e dos amola-tesouras. 
Deu-me cacimbos, fins de dia, frios e encasacados. Sonhos e amanhãs. 
Alegria, satisfação, sorrisos, risos e gargalhadas. Passeios no meio da chuva. Danças para aprender. Música para convencer. Planos para viver.
Deu-me amor. 
Não. A minha Angola não é igual à dos demais. 
Na minha Angola, na minha cidade, nada se alterou. Continua tal como antes, se eu quiser, se eu deixar, se eu a amar. 
Continua bela e generosa. Viva dentro de mim.
Quando oiço falar de Angola e do passado, do que se perdeu e do que já não existe, tenho a certeza de que não foi na minha terra que quem se queixa dela, viveu.

m.c.s.

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