quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

outono em mim




Amanheço na cidade ao clarear o dia.
Amanheço neste desencanto de não ser livre do meu destino. Hoje...
A água a escaldar embala-me a vontade de me aninhar de novo no leito morno duma noite dormida entre sonhos e sobressaltos. Amorna-se o prazer de me lavar e esfria a vontade de recomeçar.
Olho o relógio que me anuncia a hora de iniciar a rotina perdida. Relembro a taróloga que diz que para uma qualquer prova a vencer, vestir roupa clara. Estas coisas fazem a diferença. Como que campainhas que me previnem, sinais que me agradam, escolho uma blusa branca. Um casaco preto às pintas brancas. Calças pretas. Calço sapatos abotinados pretos, com salto. Cunha, melhor dizendo. Já não andava de saltos altos há tanto tempo! Confesso que tenho medo. Olho-os desconfiada. Não vá o diabo tecê-las e atirar comigo de novo para as pedras da calçada.
Vou à janela. Não chove mas nunca fiando que o seguro morreu de velho. Vou buscar o meu impermeável comprido. Há muito tempo que não o visto. Aliás, tenho-o vestido poucas vezes. Comprei-o para levar para França pois Fevereiro é agreste naquelas paragens e tudo menos passar frio,chuva e neve, longe de casa e não tendo outros agasalhos à mão de semear. Vesti-o lá e levei-o para a neve o ano passado aquando da viagem a Espanha. E pouco mais. 
Hoje está decidido, vou levá-lo para o trabalho. Tenho de me poupar. Não posso ficar doente. Percebi que não são palavras da boca para fora. Não posso mesmo ficar doente sob pena de ser atirada às traças, de desgosto, solidão e incapacidade. Ninguém tem obrigação de tomar conta de mim. Acho que sou uma doente meio difícil. Desobedeço a toda a hora. Amuo outro tanto e vitimizo-me no resto do tempo. Nos intervalos dá-me uns vaipes de optimismo e sonho com a cura para fazer coisas; ter projectos que depois na prática nunca os agarrarei. Para além de que me envelheço a olhos vistos.
Hoje há uma certa urgência em me perfumar com o perfume da minha eleição. Aquele que me recorda Luanda, encontros com angolanos, almoços entre angolanos, momentos especiais. Não sei se faço bem. Faço-o e não me questiono. Afinal hoje é o dia " d ", aquele tal do recomeço. Recomeçar cheirosa é o que se pretende.
A Pitanga gravita à minha volta, inquieta. Teve frio e procurou ficar encostadinha a mim a noite toda. Pobre gatinha! A partir de hoje e por tempo indeterminado a menos que muito em breve a minha carta de alforria se faça presente ficará entregue à sua sorte todo o dia. Estou com tanta pena de a deixar... Isto de estar dois meses sempre dia e noite, dia e noite com poucas, quase nenhumas excepções, aproximou-nos ainda mais numa dependência meio humana meio felina que nunca pensei na vida estabelecer, concordar e assinar por baixo.
Faço um prato de flocos de aveia. Para começar o dia da melhor forma. Espreitando o passado feliz e brindando a esse tempo de tão boas lembranças. 
O tempo passa tão rápido que de repente me vejo a colocar o meu cachecol preto em lã feito à mão e com a marca da beneton. Esse cachecol foi o F..... que me ofereceu no Natal. Há uns dois ou três anos. O F..... é uma pessoa de muito bom gosto. Presente que me dê é presente que eu amo. Só me dá dois presentes por ano. Um no Natal e outro no aniversário mas vale a pena esperar essas datas para sentir o prazer de receber algo que me enche as medidas. Nem toda a gente consegue essa proeza. As pessoas de bom gosto apenas. Que gostam de mim, me conhecem e podem, claro, gastar uns tostõezitos. Saio de casa. 
Há muito tempo não sentia a manhã despertar comigo. Pele com pele, voz com voz, olhos com olhos. Assim numa de muito manas. 
Aqui está uma manhã honesta. Promete pouco mas apresenta-se com o que tem, sem trunfos na manga.
Começo a viagem. A pé. Tenho de levar o chapéu de chuva, o saco com o almoço e a carteira, tudo na mão e ombro direitos. Não posso fazer carga com o esquerdo por isso, carrega maria clara.
Chego ao viaduto. Olho-o como que enfeitiçada. São 800 metros, disse-me o L.M. numa das vezes que me deu boleia viaduto fora até à zona alta da cidade. É o que vale, haver sempre uma alminha que me quer transportar. Olho-o como que enfeitiçada também porque passou sem mim dois longos meses. Olho a avenida junto ao rio. O castelo que está logo ali, as pontes e as árvores. As árvores pá! As gigantes árvores do jardim e da beira-rio cujas copas se empertigam para além do viaduto. 
A cidade outonou-se na minha ausência. Como se eu não existisse. Como se eu nunca tivesse pertencido aqui. Ah...e pertenci? 
Acho sonambulei-me fazendo-me passar por uma mais das filhas da terra, mas desconsegui chamar de terra-mãe a um solo que não me pertence, ao qual não pertenço.
Sinto-me a cada regresso, mais longe, mais ignorada, mais indiferente. 
A cidade outonou-se em tons da terra. Olho-a como se da primeira vez se tratasse. Sinto-lhe o ar bucólico e solitário duma terra a perder a folha. A perder a alegria. A perder a energia.
Hoje que preciso recomeçar, sinto o deserto da cidade no meu próprio deserto. Cruzo-me com uma mulher.Ao cimo do viaduto. Conheço-a, como conheço a cidade. Sem grande envolvimento. É costume cruzar-se comigo neste lugar. Eu subo, ela desce. Mulher do funcionário das Finanças que nunca me lembro do nome. Nora da mulher que vendia legumes no mercado e que aos sábados ajudava colocando-se lado a lado com a outra. Cunhada duma distinta médica da cidade que por acaso foi amiga colorida duma criatura que me foi próxima e que me descoloriu a vida. Afinal, parece que a conheço melhor do que parecia. Ou não...afinal conheço-lhe a estória de família, só por um acaso do destino. Como o acaso que me fez próxima desta cidade tantos anos. Cativa, melhor dizendo.
Renascer é voltar a nascer. Com a lucidez de uma segunda vez. Será que ajuda, a cidade a outonar-se? Pode ser. Há um certo romantismo nisso. 
Chego ao cimo do viaduto. Da cidade. Neste momento um único propósito me faz seguir em frente. É o primeiro dia de trabalho depois de uma paragem de dois meses. É nisso que concentro as minhas energias. 
Quanto à cidade, mais à noite logo se vê. Se chove, se neva, se se deixa ficar queda e muda à minha presença. Indiferente...outonando-se cada vez mais.

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