quinta-feira, 21 de julho de 2011

a travessia

foto tukayana.blogspot
Os barcos são todos iguais. Ou nós é que não nos surpreendemos. Não sabia como era este. Nunca precisei de vir trabalhar para a cidade antes de nascer o sol e de a abandonar no lusco-fusco, cansada e ansiosa por chegar a casa.
O barco, ia cheio de uns e outros, e pelo meio, turistas; uns como eu, de trazer por causa, outros que falam francês, não sei é se tocam piano, mas soube que gostam de ocupar os lugares da frente e por isso atropelam quem à sua frente se posicionar. Para mirarem as voltas que o barco dá, a espuma que a água verde azulada, mais verde que azul, deixa na superfície, as ondas, sim, as ondas que ele provoca. Mais uns quantos barcos iguais a este que andam todo o dia num vai e vem tejo acima, tejo abaixo, desta, para outras margens.
Sentei-me na lateral, junto a uma janela. Um homem, à minha frente, de costas para o sentido que o barco levava. E um miúdo ao seu lado. Não se conheciam. Quando o barco começou a deslizar nas águas do rio, Lisboa foi aparecendo e eu disparei algumas fotos sobre o Terreiro do Paço e castelo. Exagerando como se fosse a última vez. Nas costas da cadeira da frente, aos meus pés, uma bóia. Para o que desse e viesse. O homem olhava p'ra mim indiferente. A tudo e a mim também. Olhava porque eu me pusera bem na frente do seu raio de visão. Quando o cais se aproxima, o homem levanta-se. Olho-lhe os braços. Os cotovelos feridos até quase aos pulsos denunciam um problema. Embrulha-se-me o estômago. Talvez da calzone à Alcântara, degustada numa pizzaria giríssima e moderna, onde me levaram a almoçar, frequentada por gente gira, homens giros, chefes, com ar de chefes de qualquer coisa. Em grupo. Ou em casal. Será que o homem da psoríase já comeu calzone? Eu, foram poucas as vezes que escolhi esta pizza fechadíssima, com aspecto de rissol grande, massa e mais massa, e o recheio a surpreender-nos, para o bem e para o mal. A primeira vez foi em Montemor-o-Velho, aquando do festival internacional de dança onde a cria apresentava um trabalho, lindo por acaso, ou não por acaso. Jurei para nunca mais. Mas nunca se pode cair nesse lugar comum de compromisso tão radical e um dia destes, na esplanada das pizzas da avenida da Liberdade tentei-me e fiz bem pois as mini calzones que eles ali servem, são um manjar de deuses italianos, e não só. Nestes lugares da moda, eles são engraçados. Os pratos decorados, por vezes, causam piada. Um prato enorme, regado com azeite, está também na moda o azeite, veja-se as taças com azeite para a gente molhar o pão, a pizza em forma de rissol e mais adiante, umas folhinhas de rúcula e rodelinhas de azeitona preta. Por falar nisso, uma mulher que conheço, que podia estar ali comigo a comer pizza ou uma pasta qualquer, chefe, como os chefes que ali estavam, ao ver num supermercado saquinhos de rúcula, perguntou: Rúcula? Que é isto? E eu pasmei. Mas fiz mal. Eu, até começar a fazer saladas com queijo mozzarella, tomate, oregãos e a dita rúcula, também nunca tinha visto tal. Se vos disser que esta salada, a acrescentar-lhe massa, é o pitéu quase diário de uma figura pública da nossa praça, de que todos já ouviram falar, pelo menos, e que tem uma figura elegante e cuidada, acreditam? Sou eu que o digo, mas não digo mais poque seria uma inconfidência e apesar de segredos serem desprezados por mim, este, não me pertence e era chato.
O homem da camisa aos quadrados, cabelo grisalho e carregando uma doença tramada, nos cotovelos e no sistema nervoso, voltou a olhar-me, sempre indiferente, já em pé, virado para fora. O miúdo também se levantou. Foi-se abanicando ao som da música dos seus fones. Deixei-me ficar mais um bocadinho. Não tinha pressa. Já não tenho pressa. Perguntaram-me quando fora a última vez. A última fora de Luanda para o Mussulo. Como é que esquecera essa travessia? E esse passeio fantástico, único, de 3 horas ao longo de Luanda e do Mussulo, sentindo a cidade e a ilha beijando-me de boas-vindas e abraçando-me calorosamente num cacimbo de agosto e de amizade de infância...fazendo sentir-me eterna na minha pequenez, curvada, perante a sua maravilhosa beleza?!
Mas...e no Porto, no Douro, fazendo aquele passeio das pontes que dizem que é cruzeiro, o cruzeiro das 7 pontes, mas que afinal são 6, até à foz?! Como é que fui esquecer isso? Foi há tão pouquinho tempo, ainda não vai um ano...pior foi não me ter lembrado da travessia noturna num sábado de 81, no rio Zêzere, até uma estalagem, bem no meio do rio, numa ilha pequenina, que parecia que só lá cabia a estalagem, ou seria pousada? Só lá cabia eu e o que me levava ali...Como é que eu me fui esquecer disto?
Como se fosse um grande rio a desaguar no mar as minhas lembranças guardadas na memória a chaves de oiro, mas à margem delas e do que a maré levou, percebi a indiferença do homem grisalho, de camisa aos quadrados e braços cheios de psoríase, que olha e nada vê e viaja de costas para o seu destino.
Gosto de lugares de partida e de chegada. Gosto dos meios que nos fazem partir e chegar. Todos. Os que são colectivos. Nunca tinha atentado nisso. O prazer de viajar no meio das gentes.
Gostei desta viagem. Não foi uma travessia no deserto. Como algumas que já fiz e farei.

1 comentário:

maria disse...

Lindo texto.
Bela viagem.
Gostei muito.