segunda-feira, 8 de abril de 2013

diário de uma reformada - 3


O sábado acompanhado de um raio de sol entra-me pela nesga da janela mal fechada e insiste em despertar-me. Teimosamente me viro para o outro lado num braço de ferro com o tempo que hoje se vai fazer exigente e eu sei disso. Doi-me o braço e o ombro e procuro posição para me defender da dor. Isso lembra-me queda, trabalho, Ribatejo. Fractura e imobilidade. Muito de vez em quando sinto esta sensação de desconforto a raiar a dor, percebendo assim que a idade não ajuda à saúde e passado que foi, meio ano, ainda ando às voltas com uma quase incapacidade que me deixou mais sensível, lúcida e passiva. 
Porque nestas constatações, o que não tem remédio, remediado está, salto da cama. Em silêncio, pois está cá uma menina a dormir por uns dias, pessoa amiga duma das crias e precisa de descansar mais que eu. 
Enfrento com alguma coragem este sábado, que vai ser trabalhoso. Do caraças, direi mesmo.
Se vi um sorrisinho irónico por aí, esqueçam-no pois que tenho a dizer que ainda não me sentei descansadamente a ver as horas passar, desde que passei para a classe dos aposentados. Eu desconfiava que iria ser assim. Eu queria que fosse assim. Ontem foi assim. Hoje vai ser assim...porque preciso e quero que assim seja.
Olho o espelho e quase não me vejo. Não porque tenha emagrecido, lá chegarei, pois este também é um propósito meu que já tem pernas para andar; ocorrem-me os 7 kms diários e mais umas mudanças na minha alimentação que ajudarão ao desafio a que me proponho, mas olhando o espelho não me vejo claramente vista porque tenho os olhos inchados e pegando. 
Ontem, quando saí de Torres Novas sentia-me febril e sonolenta. Andei uns kms à chuva e talvez esteja agora a pagar por isso. 
Não gosto de me sentir doente. Assusto-me. Percebo o limite da minha existência. Percebo-me solitária e só. Percebo-me dependente. Mas e de quem? Os que poderiam gravitar à minha volta têm vida. E essa não se compadece do que se passa com terceiros, ainda que eu seja, mãe, irmã, cunhada, tia ou amiga. Não me assusta estar só. Pode parecer treta, mas pelo contrário, agrada-me. O que me apavora é a possível incapacidade. Ninguém tem de levar com ela. Ninguém pode levar com ela...
Mas, o dia de ontem está passado. A noite também, apesar de ter saído da cozinha às duas da manhã onde estive entre massas, recheios, pão ralado e rolo da massa. Onde estive cumprindo um compromisso assumido e ao qual não poderia falhar. Para onde volto logo que saia daqui onde vim para relaxar um pouco.
Quando me sinto cansada e mais vulnerável à doença lembro-me da minha mãe. Deve acontecer com todos. Será? Será que às minhas crias acontece o mesmo ou isto é só coisa de filha que perdeu fisicamente a pessoa mais importante da sua vida? Não o sei. Sei que num acto irreflectido, olhando o espelho que me devolve uns olhos inchados, com as mãos em concha e cheias de água fria, atirando esta para o rosto, me senti a própria dona Celeste lavando a cara. Ela fazia-o sempre do mesmo jeito. Tinha uma pele belíssima que iluminava a sua beleza. A minha mãe era linda...
Olho o dia através da janela da sala. Aqui junto a Lisboa. O monte a separa deste lugar. Enquanto oiço os cortes feitos, as apreciações dos jornalistas aos resultados do Tribunal Constitucional, enquanto vejo os homens do processo Casa Pia regressando aos calaboiços para cumprimento de penas, penso que já é tarde. Para mim que tenho ainda uma maratona para cumprir, na cozinha. Sim, hoje não estou para apreciações a nível do país, da política, ou do social. Das justiças ou da falta delas.
Esperam-me umas horas de trabalho. Espera-me uma festa logo mais à noite onde não sou propriamente a dona da dita nem a que vai divertir-se na dita, mas antes a que vai trabalhar.
Quem diz que aposentada fica com tempo a mais e não sabe o que fazer com ele? Na maior preguiça e arrependendo-se de ter deixado a secretária e o computador de tantos anos?
Eu não. E quero ver se nunca o direi. 
Era isto que esperava para os meus dias. Continuar olhando o relógio. Calculando o tempo que me separa dos meus compromissos e stressando com isto e aquilo. 
Motivos para me sentir viva, produzindo. 
Afinal já que não me sai o euromilhões para produzir sorrisos à toa, ao menos que o sorriso de me sentir feliz , o mantenha na alma, que ri desde que me sinto livre para escolher o que quero para a minha vida. 
Bom sábado para todos, aposentados ou não.

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