quinta-feira, 4 de abril de 2013

Diário de uma reformada - 2


Acordar às 8,30 horas diz-me que estou já a relaxar. Como se fosse sábado.
Dona Pitanga deve estar intrigada com a súbita presença pela casa e na sua vida.
Ganhou um colo mais demorado e quentinho aproveitando os momentos em que estou a tomar o pequeno almoço.
Ah vida boa de quem pode sentar-se para fazer as refeições demoradamente, enquanto olha a televisão e escuta as últimas das cheias que desvastaram o Ribatejo. O distrito de Santarém, mais precisamente. Aqui a poucos kms de mim. 
Imaginem que até o Almonda fez das suas, alagando terras lá para os lados da Zibreira, freguesia da minha amiga Idalina que passou por estas bandas há pouco, a caminho duma Europa mais para norte. Mas também o Zêzere e o Tejo deram largas à sua corrente e vai daí alagaram terras como Constância, Tancos, Barquinha, Golegã, enfim, está tudo a verter águas. As ruas passaram a ser navegáveis e as populações, algumas, isoladas. Bem sei que estas gentes estão habituadas a isto e encaram as inundações como coisa natural e até como espetáculo. Vem a televisão, filma, vêm os bombeiros e levam-nos às compras, andam de barco e ainda dão entrevistas. Uma movida ribatejana que acontece de quando em quando e à força 
de tanto se repetir, permitiu que as populações se precavessem. 
Sabiam que há gente aqui da cidade, e de outras perto, como Tomar, Entroncamento, Abrantes, que sai de casa de propósito para ir ver as cheias? Estou a falar, mas se tivesse com quem ( estão todos a trabalhar, que ironia! as minhas pessoas são mais novas que eu e não pertencem ao regime especial, digo eu ) pois, dizia, que se tivesse com quem, também palmilhava estas terras mais próximas, aquelas que fotografei há 3 semanas e que são ribeirinhas, para ver o efeito das águas, da barragem de Castelo de Bode, enfim, para perceber o que a Natureza é capaz de fazer se o quiser e estiver para aí virada. 
Virada estou eu para mais um dia de kunanguice. Não tenho culpa de estar a chover. Tão pouco de levar isto como se de férias se tratasse. E muito menos de desfrutar desta calma. 
Os passarinhos cantando, um quase silêncio somente interrompido pelos gritos dos miúdos da escola. É a minha sina viver junto de escolas; um dia ainda hei-de perceber o porquê de ser destino; por algum motivo o é, porque sou pessoa de não acreditar em coincidências. 
Habituadas que estamos a falar ao telemóvel quase nos esquecemos do fixo, quem o tem evidentemente e eu tenho-o. Nem sei bem porque o mantenho mas se calhar é uma herança de gente a dar para o conservador, sou-o em algumas coisas. E quando toca, uma criatura fica a olhar espantada para ele e a pensar: Quem será? É gente com certeza, pois não são muitos os que o têm e não consta da lista telefónica, mas ainda assim já tive chamadas anónimas duma doida, por sinal angolana, ( por isso, gente, também as há doidas varridas ), que me telefonava esquizofrenicamente e também me acordava às quatro da manhã para me ouvir. Nunca saberei porquê. 
Tinha sido minha colega do colégio e encontrou-me num site que se chamava sanzalangola e quis ver-me ao fim de quarenta e tal anos, mais precisamente, desde os meus nove anos de idade, idade com que saí do colégio para o liceu. Depois de ter recuperado alguma memória da dita cuja colega, anuí e encontramos-nos. E esta estúpida aqui, que tem a mania de confiar, desconfiando, facilitou. E vai daí, dei-lhe os números de telefone, mails, etc, etc. Pistas, várias pistas para ser lixada, que é mesmo o termo. E fui. Mas já lá vai.
Hoje pela manhã o meu fixo tocou várias vezes. Sabem que estou reformada. E em casa. E ligam. E eu gosto que me liguem. Não deixo aqui o meu número porque corro o risco de não receber nenhuma chamada vossa e poderei (?) eventualmente ficar infeliz. E infeliz é o que não me sinto nem estou a fim, neste momento, gozando os meus dias numa boa. Por enquanto sem pressas nem trabalhos. Apenas, deixando-me levar.
Qualquer pratinho de sopa é fantástico para almoço, quaisquer ovos mexidos, uma fatia de queijo, uma salada, acompanhada de chá verde ou de uma limonada com gengibre ralado e folhas de hortelã, qualquer alimento que escolho a meu bel-prazer é um manjar dos deuses. 
Qual marmita qual carapuça!
Quem disse que dentro de casa o mundo não é interessante? Nem sequer temos mundo? Vocês o disseram? Não sei. Eu. Eu disse-o algumas vezes, que estar em casa era um sufoco. Uma prisão. Uma castração. 
Retiro o que disse. É bom estar em casa. Sair para visitar amigos, andar os quilómetros que me apetecer, ontem foram pelo menos dez quilómetros, antes de ontem até subi ao castelo e percorri as suas muralhas, espiando a cidade e o rio almonda que vai enfurecido a caminho das cachoeiras e da foz. Sair para fazer compras, ir ao cinema, jantar com a minha gente e regressar a casa. 
Que sensação boa é voltar para o meu aconchego sem pressa de dormir, sem pressa de acordar, sem pressa de viver tudo num ápice como se não houvesse amanhã.
Disse-me uma amiga do peito, ( hoje já falei com duas que são daquelas para sempre ), que o importante é viver um dia de cada vez. 
Estou a aprender a fazer isso e a sair-me mesmo, mesmo, bem.
O caminho certo? Acho que finalmente achei. E já não é segredo. Lucidez e tranquilidade. 
Não é a reforma que nos dá isso, mas que ajuda, ajuda...

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