domingo, 25 de setembro de 2011

divagações I

Amanhã acordo cedo. Com o despertador. Como todas as manhãs.
Descalça e aos apalpões ( falta de óculos ) encaminho-me para a sala de banho. Abro a torneira. Nem um pingo d'água. Vieram cortá-la. Por falta de pagamento. Nem um pingo d'água. Nem um pingo de remorso...
Espanto o sono num balde d'água fria que guardei, para o efeito. Por causa dos avisos repetidos que me chegaram, pela televisão, jornais, rádio. Por todo o lado. Ah, e também dos serviços municipalizados.
De cara lavada, dirijo-me à cozinha. As idéias caem-me na fraqueza e desorganizam-se. O saco do pão ainda tem tostas do tempo das vacas gordas, quando aos domingos os pitéus começavam no paté de lagosta ( para as tostas ) e depois as gambas ao alho, o arroz de tamboril, o doce de abóbora e pinhões com requeijão de Seia, o Paris-Brest com chantily caseiro e a acompanhar os vinhos alentejanos, o champanhe francês, o uísque de Malta e o Porto D. Antónia para as senhoras. Para as senhoras...para mim. Que outras senhoras? Estávamos no tempo das vacas gordas.
Lembrei-me que havia um papo-seco. Estará duro, ( que nem cornos, que também já houve, benza-os deus ) mas nada que uma faca elétrica não resolva. Há cá uma em casa, desse tempo, que o cortará em fatias crocantes. Uma prenda do falecido, no dia da mulher. Eu sempre achei que o falecido tinha gostos de cortar à faca mas nunca pensei que os levasse ao extremo.
Doce de abóbora é que já não há. Os pinhões estão pela hora da morte e não fui às pinhas, que uma senhora não se arrasta moribunda, pelos campos onde as pinheiras mansas proliferam.
Mas há mel. Um pote que guardei de um tempo em que me davam beijos que traziam e sabiam a mel. Guardei-os. Aos favos. Não sei se fiz bem. É que o mel cristalizou e tenho que consultar a internet para perceber o processo pelo qual os cristais passarão, para que amaciem. Isto se não cortarem a luz entretanto. Ao domingo não há piquetes. Os homens têm de descansar. É um alívio saber isso. Pensando bem, amanhã terei de procurar a última factura. Não sei quando o carteiro a trouxe. Não estava cá. E não me ralei com a data. Depois se veria. Amanhã. Amanhã será o dia. De estômago vazio não sei pensar. Nem ver os papéis que atirei para a pasta e depois meti na caixa dos papéis inúteis, quando fora de prazo.
Amanhã tenho de comer uma fatia de papo-seco crocante, barrado de mel cristalizado senão perco as forças p'ra ler a mensagem da operadora lembrando que será o último dia para o cumprimento da assinatura do telefone.
Amanhã olharei as tostas esperando o mel, antevendo o momento do prazer sublime. Pena é que a semana passada cortaram o gás. E amanhã a água. Porque beberia um copo gigante de água morna, em jejum. Para me manter elegante, neste tempo das vacas magras, salvo seja.
Há outra coisa para fazer amanhã. Comprarei um boletim do euromilhões, com 2 euros. À sociedade com a vizinha, que um dia destes me bateu à porta a pedir-me uma chávena de arroz para cozinhar aos miúdos. Diz que nos últimos dias apenas têm comido na escola. Em casa, apenas pão com dentes e duro como o meu.
Era o meu último pacote de arroz. Sobrara do tempo do arroz de marisco e do falecido. Disse-lhe, à vizinha claro, porque não falo com mortos, que levasse a almoçadeira de volta. Era grande demais. Ofereci-lhe uma de chá. Leva menos arroz. Estava deserta por me desfazer da dita, oferta duma tia velha, do falecido! Feia como tudo, a chávena e a tia. E depois, eu não bebo chá em chávenas de chá. Sou mais de canecas. Tenho uma que me saiu numa promoção de cereais. Até tem um caranguejo vermelho desenhado e a palavra câncer escrita por cima. O meu signo. Foi uma coincidência, mas ia jurar que queria dizer alguma coisa. O destino a fazer das suas.
Amanhã, depois dos problemas passados, hei-de procurar umas folhas daquele chá que havia lá no quintal e tomei muito em pequenina. E anuncio já, antecipando-me, que promoverei um chá das cinco e convidarei as pessoas que conheço, só as simpáticas e que nunca beberam chá.
Amanhã, assim que o despertador tocar, espantar o sono no balde d'água fria, descristalizar o mel das tostas e organizar as idéias, procurar o chá, faço a mala. Com uma muda de roupa. Um casaco de pele nova. E uns sapatos resistentes para os pontapés às pedras e confortáveis para que não me firam a pele, a carne, o sangue, a alma, faço a mala e começo a viagem.
Amanhã! Amanhã verei a esperança penhorada pelo tribunal. Far-me-ão fiel depositária de um inevitável passivo.
Hoje não é senão a véspera de amanhã, por isso deixem-me ter esperança e sonhar até adormecer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Fantástico texto, Maria Clara.
Com requintes de malvadez deliciosos.
A.L.