Já voltou a chuva. O frio. E o chapéu de chuva. E também as botas e a gabardine.
E o cheiro a papelão molhado. A capim e ratos mortos. Nas sarjetas.
Voltaram os contentores do lixo cheios e o pivete a um quarteirão de distância. Gritam socorro. Oiço-os, desesperados e desbarrigados de tanto plástico azul, branco e preto. Algum do pingo doce, lidl e até do forte, do Olival, aqui dos meus vizinhos, Marta, Fernando, Mário e Cristina. E Nela. A empregada. Uma equipa.
É dia de euromilhões e hoje há jackpot. Não o compro na papelaria aqui em frente porque levo um saco de lixo para o contentor e não me parece certo enfrentar uma fila com lixo nas mãos. Não é bonito. Nem saudável. Tenho cuidado. Gasto dois ou três sacos de supermercado, antes de o colocar dentro dos convencionais. Mas acumulo lixo nestes dias de greve e a fila do euromilhões não tem disso responsabilidade ou culpa.
Sigo adiante, Olival fora, pela rua de Angola. Há quem lhe chame a rua dos cafés. Realmente tem uma marisqueira e dois cafezitos com esplananda e tudo. E tem o movimento de carros e autocarros duma grande cidade, por ali passarem os que vão para outras localidades e vêm de Lisboa. Tem ainda uma pequena loja com caixotes de legumes e fruta, à porta. Já lá tenho comprado abóbora manteiga e courgetes, muito mais baratas, para levar à minha cria, quando tenho dinheiro na mão, porque estas lojas de indianos e paquistaneses não aderiram à modernidade e para eles é dinheiro na gaveta contra saco de compras na mão. Esta pertence a um indiano entradote na idade, digo eu, que o observo enquanto me faz o troco e mete as compras no saco. Desde a primeira vez que entrei na loja que este homem me sorri com a alma, a boca e os olhos malandrecos e doces. E ar bonacheirão. É um homem de estatura mediana, muito bonito, tez morena e cabelo branco. Responde-me olhando dentro dos meus olhos e tem gestos lentos e delicados. Lembra-me o avô Carvalho, quando está trajado à europeu. Cada vez que passo na rua, ele cumprimenta-me como se fôssemos velhos amigos. Desenha um sorriso no meu rosto sempre e hoje também, que se mantêm, ao passar em frente ao tasco que fica antes do viaduto, quando do interior d' um automóvel que passa,
- acorda ó vagabundo. Para um homem dormindo obscenamente sentado na esplanada. Conheço-o. É um homem pequenino, viscoso, que se o olho quando por ele passo, cumprimenta-me. O seu poiso é pela rua de Angola quase sempre. Se bem que já o vi na minha rua, à porta do supermercado. Não sei porquê, ou sei, faz lembrar um rato, acabado de sair duma qualquer sarjeta, com a chuva. Não gosto deste homenzinho cambuta que me sai ao caminho cada vez que saio à rua. Faço vista grossa quando me cruzo com ele porque algo me diz que devo fazê-lo. Homem pequenino, velhaco ou dançarino e não me consta que dance, apesar de o encontrar muitas vezes perto do teatro, junto ao viaduto, que atravesso.
- Acorda ó vagabundo! Bem visto...
Entro no pequeno café d'onde se avistam os prédios da quinta das lavadeiras. Ali, onde no meu regresso, vinda do centro de Lisboa no 36, já me sinto finalmente em casa, farta que venho do pára-arranca quase de uma hora. Ali, onde os taxis mudam o tarifário porque vão a sair da cidade e a entrar noutro concelho, neste caso o de Odivelas. Já aqui tenho entrado quando vou apertadinha, que até cruzo as pernas. Peço a chave e uma garrafa d' água e e fico com acesso ao quarto de banho. Descobri que são rápidos no atendimento e nunca há fila para o euromilhões. E quem sabe um dia qualquer destes, me dá sorte?!
São sete da tarde. Tenho tempo para chegar à baixa. O metro acaba de passar. Vejo-o cruzar-se com o que acabou de sair da estação de Odivelas. Não faz mal. O livro de crónicas, o último, do meu escritor favorito está na mochila. Vou reler mais uma das fantásticas crónicas deste homem, que tem sabedoria, poesia e alma de melhor escritor do mundo. Subo as escadas rolantes sem pressa. Já o fiz a correr. E ao cimo, o metro que já tinha as portas fechadas voltou a abrir-se para mim numa boa vontade do maquinista, que não foi a primeira vez, o que arranca sorrisos de troça à minha filha.
- Tens noção que não é o mesmo, não tens? - Claro que tenho né? Como tenho a NOÇÃO que têm tempos para pararem nas estações. E no entanto já foram várias as vezes que a criatura esperou por mim, fosse um ou vários.
- E tens noção de que é por causa da tua idade, espero...( mais sorrisos de troça )
Nem respondo. Mãe é sempre muito velha para umas coisas e muito nova para outras. Sorrio agora à ideia.
Ainda não desfiz a personagem já o metro se aproxima a velocidade moderada. Entro para a última carruagem, que a esta hora vai quase vazia. Olho o relógio. Faltam 45 minutos para o meu compromisso. Chegarei mais que a tempo. Apesar da chuva ter voltado. Só que a faringite não volte...
E o cheiro a papelão molhado. A capim e ratos mortos. Nas sarjetas.
Voltaram os contentores do lixo cheios e o pivete a um quarteirão de distância. Gritam socorro. Oiço-os, desesperados e desbarrigados de tanto plástico azul, branco e preto. Algum do pingo doce, lidl e até do forte, do Olival, aqui dos meus vizinhos, Marta, Fernando, Mário e Cristina. E Nela. A empregada. Uma equipa.
É dia de euromilhões e hoje há jackpot. Não o compro na papelaria aqui em frente porque levo um saco de lixo para o contentor e não me parece certo enfrentar uma fila com lixo nas mãos. Não é bonito. Nem saudável. Tenho cuidado. Gasto dois ou três sacos de supermercado, antes de o colocar dentro dos convencionais. Mas acumulo lixo nestes dias de greve e a fila do euromilhões não tem disso responsabilidade ou culpa.
Sigo adiante, Olival fora, pela rua de Angola. Há quem lhe chame a rua dos cafés. Realmente tem uma marisqueira e dois cafezitos com esplananda e tudo. E tem o movimento de carros e autocarros duma grande cidade, por ali passarem os que vão para outras localidades e vêm de Lisboa. Tem ainda uma pequena loja com caixotes de legumes e fruta, à porta. Já lá tenho comprado abóbora manteiga e courgetes, muito mais baratas, para levar à minha cria, quando tenho dinheiro na mão, porque estas lojas de indianos e paquistaneses não aderiram à modernidade e para eles é dinheiro na gaveta contra saco de compras na mão. Esta pertence a um indiano entradote na idade, digo eu, que o observo enquanto me faz o troco e mete as compras no saco. Desde a primeira vez que entrei na loja que este homem me sorri com a alma, a boca e os olhos malandrecos e doces. E ar bonacheirão. É um homem de estatura mediana, muito bonito, tez morena e cabelo branco. Responde-me olhando dentro dos meus olhos e tem gestos lentos e delicados. Lembra-me o avô Carvalho, quando está trajado à europeu. Cada vez que passo na rua, ele cumprimenta-me como se fôssemos velhos amigos. Desenha um sorriso no meu rosto sempre e hoje também, que se mantêm, ao passar em frente ao tasco que fica antes do viaduto, quando do interior d' um automóvel que passa,
- acorda ó vagabundo. Para um homem dormindo obscenamente sentado na esplanada. Conheço-o. É um homem pequenino, viscoso, que se o olho quando por ele passo, cumprimenta-me. O seu poiso é pela rua de Angola quase sempre. Se bem que já o vi na minha rua, à porta do supermercado. Não sei porquê, ou sei, faz lembrar um rato, acabado de sair duma qualquer sarjeta, com a chuva. Não gosto deste homenzinho cambuta que me sai ao caminho cada vez que saio à rua. Faço vista grossa quando me cruzo com ele porque algo me diz que devo fazê-lo. Homem pequenino, velhaco ou dançarino e não me consta que dance, apesar de o encontrar muitas vezes perto do teatro, junto ao viaduto, que atravesso.
- Acorda ó vagabundo! Bem visto...
Entro no pequeno café d'onde se avistam os prédios da quinta das lavadeiras. Ali, onde no meu regresso, vinda do centro de Lisboa no 36, já me sinto finalmente em casa, farta que venho do pára-arranca quase de uma hora. Ali, onde os taxis mudam o tarifário porque vão a sair da cidade e a entrar noutro concelho, neste caso o de Odivelas. Já aqui tenho entrado quando vou apertadinha, que até cruzo as pernas. Peço a chave e uma garrafa d' água e e fico com acesso ao quarto de banho. Descobri que são rápidos no atendimento e nunca há fila para o euromilhões. E quem sabe um dia qualquer destes, me dá sorte?!
São sete da tarde. Tenho tempo para chegar à baixa. O metro acaba de passar. Vejo-o cruzar-se com o que acabou de sair da estação de Odivelas. Não faz mal. O livro de crónicas, o último, do meu escritor favorito está na mochila. Vou reler mais uma das fantásticas crónicas deste homem, que tem sabedoria, poesia e alma de melhor escritor do mundo. Subo as escadas rolantes sem pressa. Já o fiz a correr. E ao cimo, o metro que já tinha as portas fechadas voltou a abrir-se para mim numa boa vontade do maquinista, que não foi a primeira vez, o que arranca sorrisos de troça à minha filha.
- Tens noção que não é o mesmo, não tens? - Claro que tenho né? Como tenho a NOÇÃO que têm tempos para pararem nas estações. E no entanto já foram várias as vezes que a criatura esperou por mim, fosse um ou vários.
- E tens noção de que é por causa da tua idade, espero...( mais sorrisos de troça )
Nem respondo. Mãe é sempre muito velha para umas coisas e muito nova para outras. Sorrio agora à ideia.
Ainda não desfiz a personagem já o metro se aproxima a velocidade moderada. Entro para a última carruagem, que a esta hora vai quase vazia. Olho o relógio. Faltam 45 minutos para o meu compromisso. Chegarei mais que a tempo. Apesar da chuva ter voltado. Só que a faringite não volte...
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