terça-feira, 21 de janeiro de 2014

inspiração

É quando baixo os estores, tranco janelas, puxo cortinados, ligo o candeeiro da mesinha do lado, onde, abandonado, está um cinzeiro que não serve a ninguém, imagino-me por segundos, acendendo um cigarro e já nem sei segurá-lo, tanto ano que passou depois do último e ainda mais desde o primeiro, é nesse momento exacto com o cenário perfeito, todo encenado e orquestrado por mim, que me entrego ao abandono do corpo. 
Ao prazer da alma, que apela por acordes de uma guitarra antiga que foi também deixada para ali, silenciosamente esquecida. 
Como se não houvesse mais, quem escutasse. Quem apreciasse, quem se encontrasse, quem trinasse e gemesse ás cordas gastas e desafinadas duma vida de cantoria e de palco.
Talvez fosse boa ideia aprender a dedilhá-lha. Tenho os dedos perros, insensíveis e trementes. Talvez não seja boa idéia. 
Afinal...
É noite. Dizem-me as estrelas que timidamente se espalharam no céu e acusam o cansaço de tantos dias de temporal.
Diz-me o silencio da rua, cortado por um automóvel ou outro. 
Pergunto-me sempre para onde vai, quem levará, que noite ainda lhe brilhará, que estrela o aquecerá, onde irá terminar...
Diz-me o telefone que toca todas as noites. Certo ao segundo, mais minuto menos minuto. Como um despertador que pretende que seja, na manhã seguinte. Como que a dizer-me que não posso, não devo deitar-me ao abandono, sem eira nem beira, nem responsabilidade. 
Diz-me a tosse da vizinha, que chega por volta destas horas, todos os dias nas badaladas das oito, do sino da igreja, aqui da frente, sabe-se lá por que motivo, mas qualquer dia, se não passa, não passará, deixo escadas e ofereço-lhe um xarope de cenoura, não o faço agora porque já vesti o pijama e não pareceria lá muito bem, sobretudo porque tem coelhinhos cinzentos, desenhados, por cada centímetro de tecido azul. Na verdade, nem sei se tenho cenouras. Já os coelhos as comeram, enquanto absorta em pensamentos noturnos me deixei levar. 
Gosto da penumbra que crio. Na noite, que acredito abandonada em mim. 
No silencio do mundo e nos meus pensamentos vagabundos. 
Gosto de falar com o tempo. Entre murmúrios e suspiros.
Gosto de sentir a noite quente, fugir-me no sonho ardente de muitas madrugadas.
Gosto de abraçar o momento e dormir no esquecimento. Até que se faça dia. 
É quando tudo me grita que é noite, que o tempo cresce e se agiganta e nasce das trevas, poesia.

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