segunda-feira, 5 de março de 2012

pela manhã, segunda-feira



Desço a rua do antigo centro de saúde que foi  isla e a seguir salas da secundária maria lamas e hoje é atl. Como sempre, andando rápido. Nas minhas sabrinas mais novas que parece que são como redbull dando-me asas para voar mais rápido até ao viaduto. 
Uma mulher com a minha idade tem de se calçar confortavelmente. Já não deve embarcar em saltos, modas, montras apelativas e amigas que se exibem no alto das suas andas como se deslizassem de patins porque não palmilham ruas, becos e esquinas como eu, nem devem ter uma coluna como a minha, que ainda hoje achei que em vez de 56 anos tenho para aí oitenta  e ia a descer a rua do atl e a pensar para com os meus botões - maria clara isto não se põe melhor, e se um dia queres andar e não consegues? E quem te mandou quereres viver no topo dos prédios, sem vizinhos por cima? E quem é que te vai valer? E...
Avistei o João S. ao fundo da rua. Mudou o sobretudo escuro para uma gabardine beje. Quem lhe disse que ia chover? E calças bejes também. Como se o João precisasse de chuva para se exibir.   ou de verão para calças brancas. Com a sua velha pasta na mão como se de um executivo se tratasse, sempre gostou de parecer mais do que é, o seu andar de passos curtos e um sorriso sempre igual, aproxima-se de mim. Hoje páro. Assim como assim nem vou atrasada. E é segunda-feira. Já basta o que basta e o João tem sempre uma qualquer saída que me faz sorrir. Previsível e bem disposto ainda que o mundo esteja para acabar mais logo. 
- Sempre que te vejo lembro-me de há 30 anos atrás. Ou mais...
- Ai é? - Curiosamente eu também me lembro dos tempos passados. Desse tempo divertido e inconsequente, na década de 70. Éramos, a bem dizer, uns miúdos. Ele acabado de chegar de Nambuangongo, assustado e cacimbado de todo, e eu, triste, terrivelmente triste,  de Luanda. E nos juntávamos na Império, da Bia, a dona da pastelaria, do sr. Alves, empregado com quem os rapazes gozavam pelo seu jeito feminino, que exagerava para os ouvir, no Viela, do Sr. Mário, na Abidis do  Manel, homem ressabiado, racista e politicamente infeliz, que acabou por acabar com a vida deixando filhas bebés ao deus dará que tiveram que crescer sem pai. E nos juntávamos na praça 5 de Outubro e tirávamos fotografias no castelo e passávamos horas na esplanada da avenida que na época era dos pais do João jogador de hoquei, briguento e...comunista, o que não abonava nada, mesmo nada a seu favor, hoje convertido num respeitável solicitador, professor, pai de família. Um senhor.
- Ai é? Ecoou na minha cabeça. 
- A sério. Lembro-me daqueles tempos. Era porreiro não era? Não era como hoje. Quais computadores qual carapuça. A gente vinha para a rua curtir. Com pouco dinheiro. Nenhum. Tesos, ó Clara, tesos mas novos e felizes. Os cachopos d'agora não sabem viver - E riu-se.
- Pois. Tens razão. Nesse tempo fumavas à borliu um maço por dia, chulando uns e outros. Ainda fumas?
- E ainda cravo. Voltou a dar uma gargalhada. Bons tempos Clara, bons tempos. Olha, vou-me embora até ao estádio. Às nove e meia  tenho uma reunião com o presidente da câmara. O espeta-figos. E riu-se de novo. 
O alcaide, como diz uma amiga. O alcaide e o João S. reunidos por causa do desporto da cidade. Do  concelho. Olha que dois! A alcunha de espeta-figos diz quem estudou com o alcaide que lhe vem dos bancos da escola. Por ser alto. E magro, à época.Dissemos adeus como sempre, num chau e até outro dia. Ele seguiu para o estádio e eu em sentido contrário, para o viaduto. Mais uma vez sorrindo do João e para o passado comum. 
Desse tempo ficaram algumas pessoas que raramente encontro. O Tó e a Luísa são os que vou vendo por aí. Nas ruas da cidade, esta última. O outro, nas festas da cidade ou na feira medieval, e pouco mais. O Bispo, partiu para sempre, numa viagem de comboio que acabou tragicamente, em Santarém. Foi há tantos anos quantos a minha cria mais velha tem de vida. Foi no ano em que nevou em Torres Novas. Como o tempo passa, Jesus Maria! Como o tempo passa... Subo o viaduto com o sabor doce da nostalgia. Do tempo em que a feira de março se fazia no Rossio, ao cimo do viaduto. E eu, o Tó, o João, o Bispo, a Luísa, e outros, em procissão, subíamos a ladeira de Santiago a caminho da feira, das farturas da Pina, dos tirinhos, dos jogos de matraquilhos, dos carrinhos de choque e do algodão doce. Da diversão barata e possível.
Quantos anos tinha, mesmo? Poucos. Muito poucos. Vinte. Pouco mais. 
Hoje, segunda-feira, o João foi assim como uma fada, que com a sua varinha mágica tocou nos dias vividos em que eu era feliz, livre, jovem, e não desconfiava o que era ser feliz,  só porque sim. Tocou e fez-me recordar com saudade esse tempo. 
Hoje, o viaduto não me pareceu nem tão longo nem tão íngreme, nem tão cansativo.  

2 comentários:

nuno medon disse...

olá. Essas passagens pelo viaduto, dariam um bom livro. É a vida de uma menina ( a Maria Clara ), recheada de memórias, conversas, de estórias e outras coisas que vivenciou. beijos e uma boa semana. um abraço

Maria Clara disse...

Obrigada Nuno.
Bjs