Ontem, já noite, ali para os lados de Entre-Campos, acompanhei uma amiga a uma consulta - é habitual ; curto acompanhar doentes, sei lá, à falta de melhor, sempre vou para o aconchego duma sala de espera, respirar o mesmo ar que os doentes respiram e saber novidades da vida, fora das minhas quatro linhas, porque para lá das paredes do meu kimbo existem vidas e eu sou cusca de vidas alheias, sobretudo se doentes e fragilizadas, a precisarem, a bem dizer - mas como queria contar, estando eu sentada na sala da entrada ( há outra ) onde a assistente de consultório, senhora muito simpática e eficiente, admite doentes, cumprindo na perfeição a sua função, a conversa surge. Acho que ela tem grande simpatia por doentes africanas ( caem lá como tordos ). Até parece ser uma de nós. Porque deixemo-nos de tangas. Não somos melhores. Somos só mais escuras, algumas, de cabelos encarapinhados, com outros hábitos e costumes, quase sempre de taxa arreganhada e jogando problemas p'ra trás das costas conferindo-nos um cunho só mais optimista e colorido. Inconsequente. Não digo que ali no consultório as africanas se riam às gargalhadas, exibam os seus telemóveis topo de gama, as griffes, mandem postas de pescada por tudo e por nada sobre as suas ociosas vidas para impressionarem não só as tugas, mas também as compatriotas menos sortudas, até porque seria desadequado, pois quem tem cu tem medo e perante uma bata branca, os sintomas incomodam e fazem tremer; não digo que ali não entrem apenas as africanas mais normais e parecidas com as europeias. E talvez por isso ache a assistente, uma das nossas. Aculturada.
E, porque, à minha amiga já a conhece há décadas e a mim desde a reforma, as conversas surgem e sendo como as cerejas fluem e andam de mão em mão. As nossas, claro, porque à hora que lá esperamos já as senhorecas desta ervilha, querem é ver novelas, no sofá da sala, esquecendo doenças que as afligem perante os chefes, durante o dia; e na cama, perante os maridos.
E dumas para outras, a senhora assistente, que até parece uma de nós, acaba naquela troca de trocos, dinheiro mais que trocado, moedas pretas, escárnio e maldizer, a contar que um dia destes, há bem pouco tempo, estando numa esplanada com uma amiga, se lhes abeirou um pedinte. Dos nossos. Aqueles a quem chamamos pobre, sem-abrigo, mendigo, quando não chamamos, drogado, arrumador, larápio ou sarnoso. Que lhes disse ter fome; que queria uma moeda. A assistente da doutora logo lhe deu uma moeda de um euro para as mãos, enquanto a amiga procurou e achou uma moeda de cinquenta cêntimos e algumas moedas pretas de valor inferior, entregando-as. Acto imediato, a criatura, a tal que vai sendo baptizada conforme o cidadão a vê, olha as moedas, escolhe as menos valiosas e atirando-as literalmente à cara da benfeitora diz - P' ra que é que eu quero moedas pretas? Não servem p' ra nada.
E perante a surpresa indignada de todos os presentes, vai embora com o rei na barriga, arrecadando em menos d' um fósforo um euro e mais cinquenta cêntimos, desprezando as restantes. Desprezando as suas benfeitoras. Desprezando-se...
Nem sequer me indignei com a história. Afinal é o que temos. O que a casa gasta. Mas, perante o insólito da cena eu reforcei a minha teoria. Muito minha e quem quiser que a deite fora.
Só dou esmola aos " nossos " pedintes cegos. Esses pelo menos não vêm a cor da contribuição.
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