Numa cidade a rebentar pelas costuras nesta sexta-feira treze, a duas semanas do Natal, centros comerciais à pinha, metros lotados, sacos aos montes, chapéus de chuva, correrias, centro da cidade molhado, iluminado, em festa, buzinadelas, castanhas assadas, Jovens vendendo droga numa mão e óculos de sol noutra, trânsito, muito trânsito, grupos cantando nas estações de comboio, metro, na rua, cânticos de natal, a palavra que me ocorre é SOCORROOOOOOOOOOOOOOOO! Tirem-me daqui.
Depois de quase uma volta ao bilhar grande, de taxi, finalmente este pára em Santa Apolónia. Deixo a caçula no comboio das 18,46 horas e desço as escadas rolantes que me levam ao metro. Espero breves instantes. Ele chega. A estação é terminal. A carruagem onde entro está vazia. Sento-me numa ponta. Estico as pernas até ao banco da frente. Fecho os olhos e respiro fundo. Giro o pescoço para a esquerda e depois para a direita. Por fim, para cima e para baixo. Olho em frente. Ninguém.
Há uma sensação agradável e doce na solidão da carruagem. No silêncio. Em mim.
Finalmente o dia descomplica-se. Por breves minutos. O tempo de uma estação a outra. Mas vale a pena.
Ainda me falta muito para chegar a casa. Mas este tempo só meu, valeu para recuperar a paciência que terei até lá chegar, que é como quem diz, a espera do 36 no Rossio e a respectiva viagem até à rua de Angola.
Percebo depois que não tenho tido muita paciência para as pessoas e situações. E ainda não melhorei.
No autocarro, vai uma criatura transtornada, à minha frente. Homem de mais de sessenta anos, olhos esbugalhados, testa enrugada, voz desagradável. Insulta os fiscais. Insulta os " pançudos " das carris.
Por isso é que não querem a privatização da empresa. Vinham todos para a rua. Perdiam os tachos, diz ele.
Olho-o mas ele desvia o olhar. Não quer ninguém a perturbar-lhe o raciocínio. A impedi-lo de dizer aquelas barbaridades. Meia dúzia de verdades, pensa ele.
Ao meu lado, uma mulher negra. Que ri para a amiga que vai no banco de trás. Olha-me de lado. O homem da frente continua no seu relambório um pouco desarticulado, ofensivo e mal educado. Vão todos para o c.......a mim ninguém me manda calar. Tenho razão, há-de nascer o primeiro que me cale.
O fiscal que vai ao pé do motorista e que já passara com a máquina em tudo quanto era bilhete dos passageiros, franze a testa, sobe uma das sobrancelhas e com ar ameaçador dirige-se-lhe, tocando-o no ombro:
- Ó amigo, se diz mais alguma asneira vai para a rua. O meu amigo não viaja sozinho.
- Não sou seu amigo, f......! Não me volta a tocar. Já é a segunda vez. Estão a ver? Estão a ver? Os da carris são todos uns f.d.p.. Gorilas. Olhem para eles. Autênticos gorilas. E aponta para mais dois fiscais que se apeiam na paragem seguinte. No Saldanha.
Nisto o telemóvel da minha companheira do lado, toca.
- Ainda vou demorar. Hoje vim na camioneta. Porquê? Apeteceu-me. Estava na porta, quando ele me apanhou. Parou, eu subi.
Estou mesmo aqui bem sentada a descansar. Já não estava mais com vontade de descer, apanhar metro, outra vez no Marquês até no senhor Roubado, para apanhar camioneta de novo.
Deu uma gargalhada e continuou.
O louco da frente calou-se. Para voltar à fala, quase murmúrio, asneiras umas a seguir às outras. Dá um pontapé num dos meus sacos que vai perto dos pés dele. Desculpe senhora. Não tem importância, disse-lhe.
- Fingida maria clara, disse eu para a criatura de mim que vai morta de cansaço e exausta de aturar gente. A tua vontade era atirares-lhe com uma coisa qualquer às trombas. Uma coisa daquelas bem pesada. A ver se se portava com decência. A ver se se calava de vez e parava aquele murmúrio carregado de palavrões cabeludos.
No Lumiar pede licença para passar e sai.
Dali à rua de Angola é um instantinho.
Saio do autocarro. Já não chove. A noite menos fria, está mais húmida.
O pedinte que tem os cabelos parece um ninho de cegonhas lá está sentado no banco de madeira, em frente à marisqueira. Apesar da hora a rua esta concorrida. À medida que o tempo vai passando e eu aqui diariamente, menos receio tenho, mais segura me sinto. Deve ser de me começar a sentir em casa.
O Fernando do supermercado está a arrumar a fruta, que, em caixotes está o dia inteiro no passeio. Pergunto se ainda posso entrar. A Marta logo me diz que, sim, claro dona Clara. Desta vez não me chama Olívia. Nem sei como.
Num instante as minhas compras atingem a quantia exigida para usar o multibanco.
Ainda bem que estão abertos apesar de ter passado da hora deles. Amanhã madrugo para fazer quatro dúzias de pastéis. A pedido. As compras ficam feitas e já posso madrugar despreocupadamente.
Abro a porta da rua. Subo as escadas. No segundo andar oiço miar.
Ocorre-me que há uma certa gata que desde ontem iniciou um cio assustador. Será que vou dormir esta noite? É que a noite passada, essa gata deu-me água pela barba. Só a mim...
Abro a porta de casa e ela não está logo ali. Percebo que está deitada no móvel onde deixo as chaves quando não ficam na porta. Olha-me em desespero. Faço-lhe uma festa. Poiso os sacos.
Toca o telefone. Atendo.
Que dia!
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