sexta-feira, 11 de outubro de 2013

uma história de afectos

Chamava-se...pois. Cresci vendo-o diariamente na loja de sô Santos. Tratando este por tu.
E ainda hoje não sei como se chamava. Se Seitas, se Setas ou se Seta.
Sempre falei dele como Senhor Setas.
Já não pertence ao mundo dos vivos, porém ficou para sempre na minha memória.
Razões, muitas. Várias, me levam, neste dia ruim para mim, a recordar um amigo do pai. A falar do meu pai. Sô Santos.
O senhor Setas era um homem gigante. Fui crescendo e olhando sempre debaixo para cima e mesmo quando parei de crescer não consegui apanhá-lo nessa medida de comprimento. 
Castanho cor de cacau, pertencia a essa terra que era ver para crer. São Tomé. 
Trabalhava na Fazenda Nacional, na Mutamba. Era casado com uma mulata clara, que se chamava Ester, se não estou em erro. 
Vivera no largo onde eu cresci brincando e angariando amigos que ficaram para a vida inteira. Ainda hoje o são.
Usava balalaica e chapéu na cabeça. Calças de linho brancas sujas ou cinza claras com dobra e muito engomadas e vincadas. 
Sapato picotado branco e preto. E bengala. Mas não coxeava. Devia ser só para a banga, como se lhe faltasse esse pormenor para o estilo. Fumava cachimbo. E o jornal andava sempre debaixo do braço. Era uma figura e tanto. 
Homem sem idade, porém mais antigo que sô Santos, era dono de uma educação esmeradíssima e nunca falava comigo ou com a mãe, que não tirasse o chapéu e fizesse uma vénia. 
Todos os dias ao fim da tarde, descia do maximbombo que iniciava na Baixa, na Mutamba e parava em frente à loja. E entrava. E ficava horas, até escurecer, conversando com o meu pai, encostado ao balcão, de cerveja na mão e descascando jinguba. Que comia, a par com o senhor Eurico, que trazia sempre uns camarões, num saco, para os três. Amigos que eram, os três. 
Esta figura fez parte do meu dia-a-dia na avenida brasil. Quando eu comemorava aniversários ele rompia a barreira do corredor, que separava a loja da sala e entrava para me dar dois beijos de parabéns e comer uma fatia de bolo.
Tratava-me por Clarita e sorria de orelha a orelha cada vez que me via.
Um dia, quando tinha dezasseis anos, adoeci. Parecia uma coisa simples, mas complicou-se bastante. O avô tinha deixado Porto Alexandre para ser internado na casa de Saúde de Luanda por via d' um problema pulmonar e ali permaneceu algum tempo. Depois convalesceu em nossa casa e mais tarde partiu de novo rumo ao sul, onde o esperava mulher e filhos. No dia em que viajou para o seu destino, fui parar ao hospital. Não sei se de pena, de dor de ficar de novo sem ele, de saudades, ( eu fui sempre, completamente apaixonada pelo avô ) se de quê, que não sei até hoje. 
Sei que a minha tensão subiu, deixei de comer, entristeci, emagreci bastante e tornei-me hipocondríaca do nada e vai-se lá saber porquê.
Na fase em que já estava a entrar nos eixos, no caminho de regresso do liceu para casa o senhor Setas saiu-me ao caminho. 
Parou, fez a costumada vénia, tirou o chapéu e estendeu-me a mão para me cumprimentar. 
- Clarita, como estás? 
Respondi que estava bem mas ele insistiu.
- Já estás boa? O pai anda preocupado. Muito preocupado contigo.
- Porquê? Perguntei surpreendida. 
- Porque ficaste doente. Um dia destes vi-o tão triste que lhe perguntei o que é que tinha. Até chorou. Disse que estava com medo que não melhorasses. Com medo que perdesses o ano na escola. Anda muito triste, o teu pai.
E nesse momento eu cresci. E angustiei-me. Pelo pai. Pela preocupação e tristeza do pai. Não sabia que os pais choravam pelos filhos, que o pai, chorava por mim. Por tão pouco. Achava eu...
E percebi que o amor de pais é o mais forte que existe. E nunca mais olhei o senhor Setas do mesmo jeito. Se lhe tinha respeito, passou a ser um ser sagrado. 
E nunca mais olhei sô Santos, o meu pai, do mesmo jeito. Eu há muito desvalorizara os meus achaques e no meu egocentrismo nem me apercebi do mal que provocara nas pessoas que me amavam, o meu estado de saúde.
Nesse dia compreendi que amava o meu pai acima de qualquer suspeita. E que o amaria para todo o sempre. Incondicionalmente.

2 comentários:

Agostinho disse...

Belas recordacoes. E a figura do Sr Setas faz um boneco e tanto. Poderia explora lo com mais profundidade.

Maria Clara disse...

Já não é a 1ª vez que escrevo sobre a figura.Era um personagem e tanto, mesmo.