O compromisso, assumi-o antes de saber que havia greve do metro. Mantive-o apesar disso. O 36 está aí para o que der e vier. E na pior das hipóteses está o barraqueiro ou a rodoviária para não falar dos taxis. Estes, só se de todo não lhes puder escapar. Porque os preços escaldam. Só por isso, claro. Quem não prefere andar de taxi? Eu nem sou masoquista.
Antes de sair de casa vi as entrevistas aos utentes do metro, hoje, dos transportes públicos a funcionarem. Quase todos revoltados. Quase todos intolerantes. Quase todos contra tudo e todos. Quase todos a favor dos seus umbigos.
Cheguei à paragem do 36. Deparei-me com uma fila nunca vista. Não costumo sair de casa em dia de greve de transportes. Fi-lo hoje por via do compromisso que não quis desmarcar. E também, para quê disfarçar? Para ver como a cidade funciona em dia anormal e condicionado pela greve. Afinal não sou kunanga? Não sou senhora de mim própria? Não gosto de observar?
Na paragem do 36, fiquei a ver navios mais de uma hora. Passou o primeiro completamente lotado. Nem sequer parou. O segundo apenas iria até ao Saldanha. O último, finalmente me serviu. Entrando empurrada e empurrando, deparei-me com um espaço cheio e confuso. Fiquei junto dos lugares para deficientes. Na paragem antes do Campo Grande uma das passageiras ali sentada ergueu-se e eu sentei-me. Não havia deficientes físicos por ali se bem que gente completamente desprovida de senso e educação, era mato. Quase pedi desculpas por estar bem disposta, sendo que qualquer mal encarado recebia aplausos.
Junto ao motorista um aglomerado como se estivessem a fazer um comício ou melhor, em conspiração.
Um homem senta-se atrás de mim. Ao lado de outro muito mais jovem. O primeiro critica.
- A que propósito é que se amontoam na entrada quando têm lugar aqui ? Nem deixam entrar os de lá de fora. Parecem bichos.
- Sua estúpida, diz uma mulher que fura o grupo e aparece junto de mim. Está ali colada ao motorista e não deixa passar ninguém. Deve querer aquecer o homem. Gargalhada ( quase ) geral. Encorajada pelas gargalhadas, repete, sua estúpida...
Assim passámos o Saldanha quase uma hora depois de ter deixado o Senhor Roubado.
- Não sei o que é que eles querem mais, ganham mais de 2.000 euros, só os maquinistas, porque os da manutenção limpam 1.500.
O país de tanga e estes palhaços a brincarem às greves. Ainda se acautelassem os direitos dos utentes...eles que façam as greves deles mas não nos prejudiquem.
- Se não fosse para ser assim não adiantava nada, diz o rapaz que vai sentado ao seu lado. Embora que não seja o governo que eles prejudicam, porque esses já lá têm o dinheiro dos passes. E deslocam-se em grandes bombas, não precisam dos transportes.
- Você é da Guiné? pergunta o mais velho.
- Não. Sou angolano.
- Angolano de Angola ou já nasceu aqui?
- Angolano mesmo. Aqui estou só a estudar.
- Aquilo lá está a ficar bom...
- Já esteve pior, mas enquanto a educação e a saúde não estabilizarem não fica bom.
- Sou amigo do filho d' um que já lá estiee a fazer grandes obras.
- Quem? Soares da Costa? Mota Engil e ainda há outro. Teixeira Duarte.
- Desse mesmo.
- Eles agora também estão mal. O governo fez um acordo com a China e os chineses como são mão de obra barata são os preferidos. Pior é que os edifícios estão a ruir. Mas alguém está a ganhar com essas negociações.
O autocarro pára nos Restauradores, para outro carregamento. Sai muita gente também. Começam a aparecer lugares sentados.
Alguém toca para a saída no Rossio. Finalmente a minha paragem. Saio sem dificuldade nem atropelos. Desta já me safei. Logo ao regresso, se verá. Entre mortos e feridos alguém há-de escapar. Espero estar na lista dos sobreviventes a uma greve que reconheço como legítima e que respeito porque é da minha natureza fazê-lo.
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