quarta-feira, 22 de agosto de 2012

diário

foto tukayana.blogspot
Abri um olho, depois outro. Olhei a persiana fechada. Nem sinal de dia nem sinal de sono. Tentei encontrar a Pitanga. Nada. Virei-me e toquei-a. O seu focinho estava encostadinho  a mim. Nas costas. Lambeu-me a mão e deixou-se ficar. Não evitei pensar que fico à sua mercê, toda a noite. Nunca até hoje tive razão de queixa, por isso sossego o espírito. Habitualmente acordo com o despertador do telemóvel, desligo-o, e ela aparece-me de imediato. Mas há dias que se impacienta e acorda-me. Fá-lo, tentando abocanhar o  meu queixo ou nariz. Ralho e ela pára.
Não me apetece dormir nem tão pouco ficar na cama a engonhar. Ontem acabei o dia em Leiria a comer porcarias que me fizeram mal e me impediram de ter um sono sereno e repousado. Andei quatro horas no centro comercial, entrando e saindo de lojas, numa missão de conselheira de moda e cheguei à conclusão que teria saída se acompanhasse gente que se quer vestir e empiriquitar por pouco dinheiro pois que habituada que estou a olhar os preços dos trapinhos, a entrar nas lojas mais em conta ou a procurar saldos, seria uma atividade fácil de desempenhar e pouparia rico dinheirinho a quem quisesse os meus serviços. Hei-de pensar nisso…
Trato da D. Pitanga que me parece sempre esfomeada de manhã. O tempo que tenho a mais permite que relaxe e tudo faça com calma. Saio para a rua. Ela fica à entrada da porta a olhar-me cor de céu, cor de mar. Apetece-me levá-la comigo. Atiro-lhe um beijo e digo, nem acredito que digo, mas digo para se portar bem, porta-te bem, bebé. Estarei louca? Acho que não. Todas as criaturas como eu fazem isso, eu oiço-as.
Vou enfrentar mais um dia de trabalho a que o comum mortal chama turnos por estarem os tribunais de férias. Não é verdade. Os turnos são para os magistrados. Esses sim, trabalham neste período de férias dois a três dias e nos restantes estão a banhos ou não. Mas não estão onde estamos nós.
No meu percurso a caminho da boleia que estará ao cimo do viaduto, encontro a mulher do Mourão; nunca soube o nome dela e conheço-a há mais de 500 anos. Está a abrir a tabacaria. A mais de 15 metros de mim, acena-me e dá-me os bons dias simpaticamente. Já não estranho, mas se fosse noutros tempos achava que pirara, antipática como era e sempre fazendo vista grossa aos clientes que frequentavam a esplanada do jardim de que era concessionária. Mudou. Bastante. Sei porque mudou. Também eu mudei e também sei o que me fez mudar. Contudo fui pensando nisso a caminho do viaduto.
O calor aperta e cada vez mais me parece clima africano. Fico pegajosa e a sentir-me porca e ainda agora saí do banho. Tenho de apanhar o cabelo com uma mola antes de iniciar a subida. O Luís M. disse-me há tempos numa boleia que me deu até lá acima, que eram 600 metros.  Hoje são mais de 1200. Só iguais aos dias de chuva intensa em que fico ensopada, que quando cai, deus a dá numas mãos largas que me faz dizer raios e coriscos. Há uma solidão imensa e triste quando se sobe o viaduto a caminho do emprego. Os automóveis deixaram de passar porque as gentes estão de férias. Sobretudo as gentes pequeninas pois que tenho p’ra mim que a maior parte dos automóveis que descem, levam alunos para as escolas. Subindo comigo, poucos ou nenhuns.
A cidade está bonita. Cheira a verão. Mas está deserta. Ou quase. Será que quando me for daqui embora vou sentir-lhe saudades? Acredito que sim. Eu sou um pinga amor por tudo o que me rodeia.
Há uma presença atrás de mim. Passa quase a tocar-me. Reconheço-a. Ex-mulher por duas vezes duns engenheiros que conheço. A mulher ou não teve sorte ou é teimosa, porque o mundo não tem só engenheiros, há dos outros também, os tais da mula russa. Se calhar...
Está mais magra. Volta e meia vejo-a a andar à tarde. Quando era jovem era uma mulher muito bonita, com um cabelo loiro natural, penso eu de que…, olhos claros, azuis, acho, pele branca e com estilo. Está mais magra, mas nunca será magra. Porquê? Porque tem a coxa grossa. O que é que querem? A mulher vai mesmo à minha frente. E tenho de me distrair para não sentir o coração a querer escapar-se-me pela boca, do calor e do cansaço. Do desconforto.
Quando páro à sombra duma tileira, à espera da minha boleia, vejo passar mais duas criaturas vestidas desportivamente. Hoje é dia. As pessoas estão de férias neste Agosto quente e aproveitam para porem a conversa em dia, beberem um café e andarem.
Olho de novo a cidade e penso em Luanda. Quando estou aqui parada penso sempre em Luanda. Não sei porquê mas o jardim do rossio lembra-me a minha terra. Não tem nada a ver... 
Vejo o polícia reformado que mete o joelho para dentro. Não sei o seu nome. Já não me lembro. Era da velha guarda do meu tempo de torres novas. Todos os dias esta criatura faz uma caminhada. Passo por ele quando vou para o autocarro. Ou quando vou ter com a caçula para jantarmos, ou quando subo o viaduto. Parece que não faz mais nada senão andar. Deve ter apanhado um grande susto. Os homens só quando os apanham é que se resolvem a fazer algo pela sua saúde. O chefe Cardigos foi igual. Foi até operado ao coração. E só depois é que passou a fazer a sua caminhada. Passa por mim e acena-me educadamente. Fá-lo sempre. Tínhamos uma boa relação profissional. Mas nunca o via desfardado. E agora que não lido com ele há mais de 13 anos, esqueci o seu nome. Como é que é possível? É…
A minha boleia chega. Quase que me jogo para o banco. Mais um dia para viver. É a vida!


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