sábado, 4 de agosto de 2012

a caneta do bico d'ouro



Chegou o dia. De pontos, como no exame. Prova de redação, ditado, aritmética, desenho, tudo de manhã. Sem intervalo de recreio. Nem para comer. De tarde, leitura.
No colégio, todos ficam apavorados perante esta realidade. Dona Dina,” a fera “, inspira tanto respeito que a gente nem sabe mesmo o que é que é o quê, se medo, se o tal respeito, ou vergonha que afinal se bara
lham e dá uma dor de barriga só do olhar que a sô sôoooora nos olha que nem radiografia, para ver quem pode estar no copianço. Ela baralha também quando diz: Emídio, tens muito medo, mas vergonha é a do Nero, este é o cão da escola, que entra nas salas todas, como se fosse mais um aluno, com a vantagem que sai e entra quando quer e não faz ditados nem contas de multiplicar.
Não tenho medo de fazer os pontos, mas fico sempre gelada e com arrepios na barriga e na nuca. Mas tem uma coisa boa; é a hora de exibir a caneta do pai, de tinta permanente, parker, com bico e tampa d’ ouro. Ouro é esse metal amarelo que só podemos carregar para enfeitar na banga, nos dias de festas de batizados e casamentos porque se os mais velhos gostam, os bandidos que puxam os fios na rua até o pescoço ficar cortado e entram nas casas durante a noite para roubar que até às vezes ficam debaixo das camas, conheço bué estórias dessas, caté fico toda arrepiada, que diz que se eles ouvem barulho dos donos da casa, se escondem se enfiando debaixo das camas à espera que os donos adormeçam mas eles adormecem primeiro, ressonam e são apanhados, esses mesmos, também gostam de ouro. Não sei como era a vida antigamente mas devia ser boa. O pai e o avô dizem que antigamente, antes do terrorismo, a roupa ficava na corda toda a noite, ninguém roubava, a porta ficava aberta e ninguém entrava. O rádio tocava alto e ficava lá só, a tocar, a tocar e ninguém mexia. O portão ficava todo aberto e ninguém tinha medo. Custa a acreditar. D’onde é que saíram esses bandidos todos? Quando me vou deitar, às vezes é uma maka, tenho medo e a mãe fica no quarto até eu adormecer. De luz acesa mas com o lençol me tapando toda. Se os bandidos vierem não vejo, pode ser pensem que não estou lá. Levam o rádio de pilhas que o avô me deu e aí eu vou destapar a cara e vou reclamar se calhar até vou lutar com o bandido por causa do meu rádio, que o avô me trouxe do sul.
Já acabei os pontos todos. Falta só o desenho. Tenho sempre excelente ou muito bom , a caneta encarnada. Vou desenhar uma praia. Igual à praia Amélia. Com um dongo feito de tronco de coqueiro e um pescador com o remo, um pau comprido, a direito. Vai atravessar a água na direcção do Mussulo. Vou-me desenhar também. De pé; não sei desenhar gente sentada. Não faz mal. Fico de pé faz de conta estou a ver o dongo se afastando. A lápis de cor, da minha caixa de 12 lápis, pinto a toalha de encarnado. Um dia vou ter uma toalha de praia mesmo a sério, felpuda e fofinha, encarnada, cor de pitanga madura, igual às pitangas da pitangueira da casa do avô, onde nasci. Por trás de mim vou fazer uns montes, como se diz na metrópole. Aqui se chamam barrocas, como aquelas do Miramar de onde já fomos ver as corridas de carros e de motas também. Os mais velhos gostam. O pai então…eu também gosto de ouvir o barulho do escape, acelerando, acelerando, parece aqui na avenida, o mecânico, namorado da Quina, Leandro não sei das quantas, quando experimenta as motas na avenida e faz corridas com o outro empregado, que fica tudo a abanar a cabeça e a dizer xé, vão ver só, um dia vão se dar mal, um dia acontece uma desgraça que os desgraça…
Arrumei a caneta de bico e tampa de ouro na caixa que tem cetim por dentro parece os vestidos dos anjos, princesas e cinderelas que se passeiam na marginal de mão dada com os pais. No carnaval. Só me mascaram de negra, lá dos kimbos, atrás do sol posto que eu nem sei onde fica porque nunca fui lá. Com saia feita de vassoura desmanchada e um pano no peito, não que já tenha chuchinhas, mas porque uma menina tem de se tapar. A última vez, fui eu e a Fatinha, que até nos tiraram fotografia. Quem nos mascarou foi a Ana Maria e a Bina. Até nos pintaram os olhos com um lápis preto como as artistas das fotonovelas Grand Hotel, ou Sétimo Céu, que a mãe lê e compramos na papelaria da dona Milai na Senado da Câmara. Também já me mascarei de matrafona com roupas velhas do pai. 
À tarde os pontos terminam com a leitura duma lição. A sô sôoora escolhe uma bem difícil, para nos apanhar, mas eu leio bem. Sem gaguejar ou soletrar as sílabas. Mas fico encarnada como um jindungo maduro, de vergonha. Eu tenho mais vergonha que o Nero, é por isso que eu sei. Quando estou a fazer a prova de leitura.
Depois de almoçar volto para o colégio e me desafiam e me desencaminham, para ir aos maboques que as quitandeiras estão a vender lá nas árvores em frente à casa do Silva Camato, a casa das mulembeiras onde o mano Zé nasceu. E eu vou.Vou sempre. Kuio maboques. A mãe sempre diz: maria Clara, os maboques quentes fazem mal à barriga. Olha que estiveste à morte que até te caiu o cabelo e perdeste o andar. Lembras-te? Exibo isso como um troféu. Tive uma doença esquisita que mata. Febre tifóide. Dois médicos a tratarem de mim, a doutora Rosinda Guimarães que era do Sindicato que fica num prédio bonito da Baixa e o Dr. Costa e Silva, que tem aquele aparelho grande onde nos metemos e ele nos vê por dentro, parece somos esqueleto, mas vivo, que anda e tem medo daquelas máquinas todas. O melhor médico de Luanda, diz o pai, orgulhoso de ter feito tudo para eu não morrer. Pai é assim. Mas se orgulha de não olhar a meios para atingir os fins. Desse tempo só me lembro da minha madrinha Teresa, mulher do tio Aníbal, me visitar, com uma caixa bonita d’ amêndoas às cores . Ah, também me lembro do xarope branco que sabia mal e que eu chorava para o engolir. Tens de tomar para ficares boa e ires brincar para o quintal, dizia a mãe de colher na mão e eu a chorar, a chorar… 
O sol está forte e os maboques estão a ferver. No passeio da ourivesaria, atiro um ao chão para o abrir e comer logo ali. Gosto bué de maboques. Queria ter uma árvore só para mim lá no quintal. O pai planta couves, repolhos, e abóboras, tomate e alfaces mas árvore que dá maboques, não. Porquê? Faz mal à barriga, diz a mãe. 
Guardo os outros na pasta. Olho para ver se a minha caneta de tinta permanente está lá, não a entreguei ao pai porque me esqueci. E…nada. O coração, tum-tum-tum, tum-tum-tum, o sangue a subir às pressas na cabeça, o pescoço parece tem uma mão a apertar-lhe. Paro para ver melhor. Sento no chão do passeio da ourivesaria, o cão da Teresa Mulombosa ladra furioso e eu despejo tudo para o chão. Nada. Começo a chorar. A minha caneta, ai uêeeee minha caneta, perdi a minha caneta…
Voltei às quitandeiras. A Lourdes perguntou. Ninguém viu. Me disseram que: vai aparecer, deixa só, fica calma. Logo vais a casa buscar uma agulha de coser e atravessas a avenida. Espetas só a agulha no tronco da bananeira da colchoaria, e dizes uma reza que vou escrever. Acreditei. Ao fim da tarde escondida do pai e da mãe escapando dos carros e dos machimbombos que passam para a Terra Nova e Cazenga, espetei a agulha na bananeira e voltei. Fui dormir sem jantar. Não tenho fome mãe. Vês? Foi dos maboques quentes, diz-me ela tomada de razões. A miúda deve estar doente, não quer comer, diz ao pai.
Rezei para o Sagrado Coração de Jesus pendurado na minha cabeceira, faz favor meu jesus se me roubaram a caneta do pai faz o ladrão se arrepender, mas se a perdi, faz aparecer.
Não apareceu. Até hoje. O pai perguntou por ela e a mãe disse que eu não sabia responder. O pai não fez nada. A sô sooora entregou os pontos. Tive 200 a todos. O máximo. Excelente na minha praia desenhada e pintada a lápis de cor. Levei para casa para o pai assinar. 
Cheguei feliz mostrando. Sô Santos disse: Não posso assinar. Só assino quando a caneta aparecer.
E aí percebi que ia apanhar uma coça de cinto. Porque a caneta não apareceu. Pela primeira vez na vida o pai serviu a vingança fria e chegou-me a roupa ao pêlo quando eu julgava que estava tudo esquecido. Serviu-me de emenda. Nunca mais perdi ou deixei roubar qualquer outra caneta parker, de tinta permanente e bico e tampa de ouro. 

m.c.s.

Sem comentários: