sábado, 2 de junho de 2012

a senhora Clara não gosta?



- Bons Santos. Xau.
- P'ra ti também. Diverte-te.
Estava eu no Suminho à espera do sumo de melancia e da tosta de frango, ananás e queijo, quando este casal trocou uns miminhos e uns votos de boas festas dos Santos. 
Se fosse em torres novas estranharia. Ahn? Que santos? Parece que estão parvos. 
Em Lisboa toda a gente sabe que os Santos estão aí. Os bairros estão enfeitados, já cheira a sardinha assada e à bifana no pão, à sangria e a manjericos. Bons Santos. Como, Bom Natal. Bom ano ou boa Páscoa. Boas Festas...
Por que raio um sumo e uma tosta demoram tanto tempo? Fico a pensar no que acabou de me acontecer na loja de onde saí. A miúda que me abordou por causa do cartão, que me disse ser portuguesa mas o sotaque a denunciou, diz que foi para o Brasil bebé e ali viveu uns anos, levou um correctivo. Não sei o que me aconteceu mas passei-me com ela. Já não me acontecia isto há muito tempo. Interessei-me pelo cartão. Desde que não pague coisa nenhuma e apenas sirva para fidelizar o cliente, eu adoro. Dez por cento de desconto nas compras sempre que as fizer. Tudo lindinho. Precisava comprar uma peça de vestuário. Tinha-a na mão. E não pensei duas vezes. Foi então quando lhe disse que queria fazer o cartão. Foi então quando ela me disse que não valeria para a compra que fizesse no momento. E foi então quando só faltou pôr-lhe o dedo à frente do nariz. A miúda é bem formada. Aguentou bem e pediu desculpa, mas não fizera por mal. Acabei a fazer o cartão, a ouvir os seus pedidos de desculpas entre as confidências que foram surgindo. Faz faculdade no curso mais parvo que hoje alguém poderia fazer. Palavras dela. História. Para dar aulas.Tem uma irmã enfermeira numa clínica em Massamá e uma irmã em artes. 
- A senhora Clara gosta disto aqui? Depois de me ter perguntado a morada e lha ter dado. E um miúdo que estava no balcão a escrever sabe-se lá o quê se ter rido e ter-me dito: boa zona, conheço bem. - Porquê? É de torres novas? perguntei - Não. Sou abrantino mas vou lá à noite ao fim de semana e não só.
- A senhora Clara não gosta ?
O que é que se responde a uma menina que me tentou passar a perna num assunto que a Zara não lhe agradece e que eu não aceito? O que se responde quando não se sabe muito bem se afinal se gosta de torres novas e o que não se gosta é de mofar de tédio numa cidade  com língua comprida e passo curto?
- A senhora tem facebook? E eu pasmei com a ligeireza com que contorna as situações. Escreveu o seu nome num papel e deu-mo. Me procure. Vou gostar. Vem sempre aqui?
Enfim. O Colombo no seu melhor. E eu adorando andar no centro comercial mais popular de Lisboa. Cheio de angolanos. Conheço pelo sotaque. E pela postura. Pelo andar da carruagem. São óbvios. 

À saída do metro um casal de brasileiros entradotes na idade mas com óptimo aspecto perguntou--me: Senhora, o shopping é para aqui? Sim, sim, respondi. Eu vou para lá se quiserem podem acompanhar-me.
O Colombo à sexta- feira é uma festa. O povo continua a passear-se alegremente. Lembro a minha amiga do peito que em tempos dizia que o Colombo era a nossa segunda casa. Nem tanto. Muito barulhento. A minha cabeça que esta semana não esteve no seu melhor depressa reclamou e vi-me a caminho de casa, um tanto ou quanto aliviada. O taxista? Angolano. 
A boleia que tive de manhã, quer dizer à hora do almoço caiu que nem ginjas e a nossa conversa cai inevitavelmente em Angola. Na muamba que adora. Nunca viu o mapa de Angola mas sente-lhe o sabor. Um dia ainda vou fazer-lhe uma muambada. Já prometi. É o mínimo que posso fazer.
-Clara, quer vir para Lisboa? Vou mais cedo. Também eu vinha mais cedo e foi assim, ouro sobre azul. A viagem, agradável. A companhia também. 
Olho para a noite de ontem que foi muito quente. O aniversário do pequeno Rafael que já fez cinco anos comemorou-se em ambiente familiar, festivo e caloroso. Às 11 horas da noite os termómetros marcavam 26 graus. Quando recebeu a minha prenda disse-me: Não era preciso. O Manão ( mano joão ) já me deu um helicóptero. Depois ouvi a estória da escolinha que nos faz pensar mais do que sorrir. O Rafael é um menino especial. A mãe diz-lhe depois de voltar de são martinho do porto de uns dias bons, ali passados. Rafael tens de ir à escolinha. Não quero ir, mãe. Porquê? Eles já não me conhecem. Muito bom, isto. Delicioso. Como foi bom estar em família de novo.
Olho para hoje e para amanhã. Amanhã é outro dia. Outras gentes. Outras palavras. E estórias. De gente crescida que viveu junta num bairro que nos deu tanto quando fomos crianças e adolescentes. Alguns ainda lá vivem e vão estar amanhã entre nós. Outros vivem espalhados por este mundo de Deus e querem partilhar pela primeira vez a alegria destes reencontros. A minha vida é feita de encontros, reencontros e desencontros. Mesmo. Pode ser um lugar comum mas assim é. Partidas e chegadas. Abraços e beijos. Palavras. Gargalhadas. Lágrimas. E adeus de novo. Até quando?! Nunca o saberei. Vivo longe dos que amo. Vivo longe dos que amei. Vivo perto da saudade.

Vivo desejando, sonhando, sofrendo e esperando. Esta é a minha condição. Igual a de muitos angolanos que partiram da terra na década de 70.
Lembro de novo a miúda brasileira que faz faculdade e que trabalha na Zara e hoje me tentou enganar com a história dos cartões e suas vantagens.
- A senhora Clara não gosta? Como hei-de gostar de viver longe da minha gente, da minha terra, da minha música e do meu sotaque? 
Daqui a poucas horas estarei com gente que roubou maçãs da índia do quintal da vizinha, comeu peixe espada frito em óleo de palma, viu filmes no cinema Império, estudou na Industrial, na Comercial e no Feminino. Que jogou à bilha, ao garrafão, às pedrinhas. Que correu atrás do carro do fumo e fez corridas de bicicletas nos passeios das ruas do bairro. Que lançou papagaios nos nossos céus. Que passeou comigo nas ruas, caminhos, becos e esquinas, da avenida até à Ilha, me cantou canções de embalar e até a canção do bandido.
Como é que hei-de gostar disto?
Hoje Lisboa esteve linda. E calorosa. Como se fosse verão. Já tinha saudades.
Acho que foi o único dia da semana que não me doeu a cabeça. Torres Novas?  Está lá a Pitanga. A caçula e o mano Zé. O Paulo e a Lurdes. Alguns amigos. Torres Novas está lá, no mapa que reconheço.

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