quinta-feira, 14 de junho de 2012

gente de verdade

Encontrei a Lourdes à porta da loja da Rita.
- Como é que estás Clara? Há quanto tempo...
- Tá boa? Gosto de a ver. Disse, dando-lhe dois beijos num prazer de a conhecer de sempre e olhando para a Rita, disse vaidosamente:
- Sabe que conheço esta senhora desde pequena?
A Rita ri. Os olhos da Lourdes iluminam-se.
- É mesmo Clara. Lembro-me de ti novinha e da dona celeste e do senhor Santos, diz nostálgica. Inumera as  pessoas que me dizem respeito. Fala da nossa avenida, das suas pessoas e dela.
Quem é a Lourdes? Porque a encontro neste lugar à beira-rio dum Ribatejo sonâmbulo e decadente?
A Lourdes é angolana, uma angolana mulata e bonita. Sempre foi. Também me lembro dela de há muitos anos. Na minha rua. Sem e com as meninas loiras de caracóis aos canudos, em puxinhos com um laço de veludo em cada um. Vestindo de igual e o Vasco gatinhando na sala da tia da Lourdes, minha vizinha e costureira da minha mãe, que me fazia as batas do liceu.  A tia que era torrejana e casara com o tio da Lourdes e filho da dona Vitória, uma das mulheres angolanas, mais ricas de Luanda.
A Lourdes que vivia ali ao dobrar da esquina, da avenida Brasil com o Marçal, onde a sua avó era senhora de muitos terrenos e algumas casas e lojas. Que eu me acostumava a ver passar, bonita, dengosa, simpática e conversadora.
Quando há 37 anos a Lourdes nos apareceu à frente, foi uma alegria. Nem acreditava que neste desterro que eu achava que era torres novas, havia uma alma que eu conhecesse desses belos tempos de Luanda e da avenida. O primeiro muzongué que comi aqui, foi ela que mo mandou pelo seu filho Vasco, um adolescente giro e simpático, que bateu à porta para dizer: Foi a mãe que mandou.
Depois fomos-nos encontrando. Uma vez fizemos uma festa numa quinta duns amigos do sô Santos. Um domingo de reunião. De muita música, comida e bebida. Kitutes da terra.  Todos angolanos e residentes que foram nessa terra tão saudosa. Não faltou a moamba que a Lourdes cozinhou nem a cachupa que a mãe da Ana Maria Oliveira, também fez questão de cozinhar, como boa caboverdiana  e prima da mãe Arminda, que é. Ana Maria,  minha kamba que costumo encontrar e passar uns dias em Talatona onde ela vive, quando vou a Luanda. Foram bons esses tempos logo depois de termos deixado Luanda, quando ainda todos acreditavam que passados que fossem 5 anos, ( nunca percebi porque o limite era 5 ), voltariamos para Luanda. De todos nós, só a mãe da Ana Maria voltou...A Lourdes foi trabalhar para a cozinha do hospital. E ali esteve durante longos anos. Quando havia festas por lá, ela era a fadista de serviço, porque cantava e encantava. 
O Alfredo, filho caçula,  nasceu, cresceu e hoje já tem uma cria. Trabalha no restaurante que foi do sr. Vítor que partiu tão cedo e nos deixou a mim e à caçula, desoladas porque gostávamos de lá ir à 4ª feira, e ouvir um e outro, diferentes, mas iguais na simpatia e bom trato. Na piada e no sorriso. Na educação e atenção. Eu deixei de ver a Lourdes. Mesmo morando perto de mim. Mesmo quando ia ao hospital. Apenas uma vez, ainda era o hospital velho e que estive na urgência desde as 8 da manhã até às 8 da noite, à espera que o cirurgião viesse ver-me. Na triagem o doutor Eli achara que podia ser apendicite. Esse doutor Eli, também.... Brasileiro há muito a viver nesta terra, não acertava uma...comigo. Mas era simpático e pai duma criatura que estudava com a minha cria mais velha desde o infantário e por força de nos encontrarmos tanto, era-me simpático e confiável. E eu gostava dele. Apesar dos pesares.
Depois de ter feito exames mais profundos, fora da urgência, por minha conta e risco, afinal o que eu tinha era uma colicistite, bom petisco, dizem,  que me ia mandando para os anjinhos. Nesse intervalo entre a possível apendicite e sabe-se lá o quê que o senhor doutor cirurgião, a única coisa que me soube dizer foi que não era do apêndice, o que me aliviou tanto que agradeci aos céus e a Deus não ter que ser adormecida para me esquartejarem, pois esse é o maior pânico que tenho na vida, levar com uma anestesia e que a coisa corra mal,  a Lourdes apareceu-me ao caminho e falou com a Antonieta, uma indiana que viera  de Moçambique e tinha sido cunhada do meu amigo e padrinho de casamento César, e trabalhava no atendimento  e juntas estiveram a animar-me enquanto esperava o resultado das análises feitas para saber se era apendicite.   
Há uns dois anos atrás estivemos juntas num velório duma retornada de Angola que ambas conhecíamos bem. A Nêta também. Aliás, esse velório foi um verdadeiro encontro de retornados que eu já não via há muito.
As filhas da Lourdes também lá estavam, bem como o Alfredo. Elas, as loiras, de olhos azuis, perderam os canudos e já não vestem de igual. Agora são gente crescida e vivem na cidade, minto, uma, a mais nova vive no Entroncamento onde é professora. A Gina, a mais velha trabalha na Câmara e casou com o neto do sapateiro da travessa onde  vivi  com os meus pais. Acho são todos felizes. A Lourdes sempre me pareceu feliz. Todos têm ar de pessoas de bem com a vida, com a cidade e cabendo na sua pele. Como num filme tudo me passa da memória para o presente. Ela procura momentos do passado que me são gratos. Encontramo-los juntas e recordamo-los com saudade. Luanda sempre presente. Luanda sempre no horizonte. 
- Dá-me o teu contacto. Parece impossível mas não tenho o teu telefone. Quando fizer uma moambada telefono-te para vires comer connosco. Ainda gostas de caldo? E feijão? Sabes que o meu neto, que já está na universidade e nunca foi a Angola adora feijão d'óleo de palma e funje de peixe?
E eu sorrio comovida. Esta é a minha gente. Fico em casa quando me falam assim. Quando me tocam assim. Fazem-me tocar o céu com a ponta dos dedos.
Dei os contactos. Fiquei com os contactos. Moramos a uns quarteirões uma da outra. A cabra da vida afastou-nos. Mas quando nos encontramos parece que nos vimos no dia anterior. Como família.
Afinal, não há muita gente da idade dela que me conheça desde sempre. Senti-me culpada. Fiquei desolada por não ter estado mais próxima durante estes anos. Um casamento, filhos para criar, uma profissão absorvente e a necessidade de me refugiar aqui e acolá para viver um pouco, mais o egoísmo que reconheço tive, foram causadores. 
A Lourdes tem 75 anos. Continua linda. Com voz bonita que parece beija as pessoas com as suas palavras, parece nos abraça a cada frase, a cada lembrança. Olhar sereno embora nostálgico, poisa em nós como se fossemos família. Parece é nossa mãe...Há dia felizes! Quando encontramos alguém que fala a nossa língua e cabe nas nossas memórias, enfeitando-as e suavizando-as.
Hoje foi um desses dias raros, que me enchem a alma inquieta e sedenta de gente de verdade. Que sabe amar...  

2 comentários:

persiana fechada disse...

olá. eu bem digo, que a Maria Clara deveria de escrever um livro. Escreve muito bem e tem tantas coisas para contar. Não é qualquer pessoa que domina a arte de bem escrever como a Maria Clara. É muito bom encontrar pessoas que conhecemos há anos, na rua e que gostem de nós. beijos e um abraço

Maria Clara disse...

Obrigada Nuno.
Encontrar pessoas na rua que nos conhecem de sempre é bom. Encontrar pessoas que nos conhecem de Angola, da infância em Angola, deste lado de cá, é para lá de bom. Um privilégio que me deixa feliz, porque não acontece a qualquer um e eu afinal sou uma escolhida. :)