domingo, 31 de março de 2013

o último dia, a última vez




Acordei cedo. É o meu último dia de oficial de justiça. Em Alcanena. 
Sempre me considerei funcionária do tribunal de Torres Novas, numa posse conferida pelo estágio e pelos anos de funcionária que ali trabalhei, mais de 20, porém foi em Alcanena que passei a última década e mais uns trocados e onde recuperei alguma tranquilidade no desempenho das funções. 
Nunca pensei que o processo de soltar amarras a obrigações que duraram 34 anos, fosse tão pacífico. Sei quem é responsável por isso mas adiante, sempre em frente que atrás vem gente e isso já não interessa nada se estamos na rampa final. Não há como voltar atrás, não quero voltar atrás. 
Houve no meu acordar sobressaltado ao longo da noite e no meu madrugar um sinal de que nada se faz num estalar de dedos nem tão pouco se fecham portas sem olhar para trás. Eu não o faço. Porquê? Porque eu sou passado. Construí-me e reconstruí-me nele até chegar aqui. Não me persegue...muito, mas isso são contas de outro rosário.
Às 7,30 estava pronta e não evito censurar-me por não ter sido assim ao longo dos tempos. Andei a fazer tangentes ao sono, ao banho, ao pequeno almoço e aos autocarros e boleias, às horas, num rés vés campo d'ourique stressado e muitas vezes escorregado e acabado no chão em quedas aparatosas e sofridas. 
Liguei à minha boleia. Não respondeu. Adiantei-me para o computador. A fim de ver as últimas. Alguém d'um grupo a que pertenço se passou da marmita comigo ( educada e polidamente ). Não sei se estou a envelhecer, até porque hoje é último dia no activo, se não me reconheço a deixar a falar quem comigo se quer pegar ou não concorda, não sei se porque não estou para aí virada, merdices, cansam-me. Nego-me a fazer parte delas. Não me apetece, acho enfadonho, pequenino e pouco inteligente. Cansei do diz que disse. As redes sociais têm esse perigo. A bílis das vesículas que têm pouca saúde, castigadas que são pelas coisas gordurosas, a carência de chá, só que tomassem o de caxinde e o ócio a deixarem falar o espírito um pouco doente também dá por vezes momentos de alguma crispação que não faz bem a ninguém e nada se aprende senão por vezes engolir sapos que são de difícil digestão, convenhamos. 
As redes sociais já sabemos têm de tudo e tem também gente que acha fantástico o facebook mas o propósito maior é o de cotucarem quem por lá anda calma e serenamente e a passo certo. Será que não nos acompanham na passada e ficando para trás se vitimizam disparando em todas as direcções? Não o sei. Isto sou eu a reflectir sobre pequenas divergências, pequenos incidentes. Braços de ferro numa força que comigo ficam a ganhar porque eu nem na língua a tenho, temos pena. 
Acabei desligando o computador porque tenho mais vida para além disso e hoje é o meu último dia no tribunal. 
Isso sim, parecia que não mas está a mexer comigo. Depois do livro de ponto assinado não mais colocarei a minha assinatura nos dias. Não terei mais faltas nem férias. Não me sentarei mais na secretária nem entrarei com a minha password no computador de trabalho. Não conversarei com a estrangeira que vem tirar o registo criminal para obter residência em Portugal nem contarei mais nenhuma certidão. Ao telefone não voltarei a dizer: Estou sim, Tribunal de Alcanena, boa tarde...
Isso sim, está a dizer-me que é a última vez. Que foram muitos anos. Que se acaba aqui a minha carreira. 
Que serei reformada, aposentada, livre ou lá o que fôr.
Já estou na rua, a caminho do autocarro. Esta será a minha última viagem com o Rosa, com o Júlio, com as múmias paralíticas do banco da frente, sempre prontas para afiarem as unhas a quem chega, aquelas a quem sempre chamei velhos do Restelo, com a senhora ucraniana que já me tem oferecido boleia que nunca precisei, com a outra que vem do Entroncamento e com todos os ocasionais. 
Na rua o ambiente é o de sempre, de quem trabalha e tem de se deslocar. O TUT passa apressado como que a dizer-me que são 8 e 10. Apresso mais o passo. 
- Querem ver que até hoje perco o autocarro?
Mesmo no último dia, na última vez, há coisas que nunca mudam...