sábado, 9 de março de 2013

viajando


O meu tempo começou há poucas horas. 
É sábado e supostamente devia estar ainda aquecida pelos lençóis térmicos num Ribatejo que acordou solarengo mas gelado.
Tudo preparado, o computador fechado, colocado no saco que lhe pertence, não reclama. O seu tempo comigo também é feito de algumas viagens. Conhece estações e carris. O Tejo, o Douro, o Sabor, o Almonda, o Sado, ouve o mar bater nas rochas do molhe leste e no farol do Cabo Carvoeiro. Conhece até o sorriso e a delicadeza do motorista da camioneta da carreira, sabe deus para onde e dos expressos aos fins de semana. Conhece os mergulhos dos veraneantes na piscina do hotel Praia Norte. Conhece Paris, Madrid, Genéve. O Algarve e Trás-os-Montes. Conhece Angola e os aviões da TAP e da TAAG.
Que hei-de dizer do meu computador senão que é um companheiro de todas as horas mesmo as mais tardias, fáceis e difíceis horas, fiel quanto baste que a cega é p'ra animais de 4 patas como o cão e o meu computador não ladra. Nem me lambe as feridas.
Toca o telefone. É o sinal. Para descer. Alguém que devia estar no vale dos lençóis, porque será que se diz vale de lençóis? 
Nunca percebi mas como sou pessoa de lugares comuns também digo, essa pérola de pessoa aguarda por mim na entrada. Desligo. 
Agarro nos sacos e desço. Na rua, olho a generosidade, de óculos escuros, cabelo molhado colado à cabeça, roupa desportiva, sapatilhas e um sorriso onde ainda não se vislumbram rugas, nem sequer de expressão. Aquece-me a alma. E o estômago. Porquê? 
Porque foi onde as emoções se instalaram quando há quase 6 décadas o meu tempo começou. Pouco romântico, mas tendo em conta que sou Caranguejo, diz que é mesmo neste órgão que a sensibilidade se faz presente e o fragiliza. Dizem e eu acredito. 
O saco pesa. Habituada não estranho. Não me aborreço, não reclamo. Doze minutos me separam da estação do comboio que me levará para a capital. Aquele que pára em todas.
- Porque não vais no intercidades? 
- Porque sim, respondo. Sempre. Mas como sempre, não me fico por resposta tão arrogante. Até porque me dizem tal como eu o diria: Porque sim, nao é resposta. E não. Se querem ver alguém a fritar é dar respostas destas. Eu fico podre se as receber.
E passo a explicar. Gosto de explicações. Acho que devemos dá-las. Dou-as a mim própria, até porque me estou sempre a pedi-las que até meto nojo, mas é do hábito. E depois, fica tudo claro, pratos limpos. Sem equívocos nem desculpas, assim o queiram os intervenientes. P'ra tudo é preciso compreender. Acreditar. Humildade para escutar.
No caso a explicação é esta: Gosto de viagens. De paisagens. De ter a possibilidade de perceber o que está para além da janela aberta e nua de cortinas. Do estendal repleto de lençóis de flanela aos quadradinhos e às florzinhas, dos atoalhados com aplicações em renda e panos de cozinha arrematados com picô ou lá como isso se chama que a caçula é que está bem dentro desse assunto pois que é a rainha do croché. Eu dispenso porque não há pachorra para dar ao dedo e à agulha. Aprendi. Não vou dizer que não. O suficiente para me surpreender há 4 anos em Luanda quando a Filú, filha da minha querida Arminda me recordou que aprendeu croché comigo. Eu que já nem lembro quem mo ensinou. Mas fiquei orgulhosa, vaidosa, para ser franca, por aquela kanuca dos anos 70 que colocou Clara de nome na sua filha caçula em jeito de homenagem a mim que até fiquei parece aquelas pessoas que fizeram qualquer coisa de extraordinário em prol de alguém ou da comunidade e viram o seu nome em nome de rua onde todos passam e lêem. 
E sim, gosto de ver o rio correr por entre a lezíria, por entre margens verdes da primavera antecipada e sonhar pontes que me unem a tempos que serão meus assim o universo o queira e por isto e muito mais, gosto de chegar a Lisboa num comboio pachorrento e sem desigualdades. Todos iguais. Igual à vizinha da frente que lima as unhas despudoradamente, ou a do lado que colocou óculos escuros para desistir da paisagem e deixar o sono apanhar-lhe o subconsciente. Igual ao puto chato que a cada minuto diz ao pai: ÓOOO paiiiiiiiii, paiêeeeeeeeeee, quanto falta? Paiiiiiiiiii, já chegamos?
Os 12 minutos chegaram para atravessar a passadeira de madeira, despedir-me da generosidade que me transporta o saco.
-Boa viagem e bom fim de semana. Retribuo. Entro no comboio. Começa o meu tempo de viagem. Pouca-terra, pouca-terra, curicuteléeee, e vem-me à memória o Duo Ouro Negro e viajo para outro tempo nas asas da imaginação que me da a canção que a cantei todinha no meu coração.
Páro. De me envolver com o meu passado por dá cá aquela palha. Hoje não. Não me arrancarei lágrimas de sábados distantes. Não hoje. Sou feita de tempos e hoje o meu tempo caminha para Santa Apolónia. Para a Baixa. Para almoço em família. Conversas.
Hoje o tempo é de multidões. De punho levantado e bolsos vazios. Na voz, Grândola vila morena, na atitude a indignação. Direito à revolta. À manifestação.
Destino - Lisboa - Santa Apolónia. Paragem Azambuja. São 9,33. As cidades acordam. Para trás ficou cidade do Almonda. E a Pitanga. Instalada no pufo vermelho p'ra gatos. Olhar azul celeste intenso. Como que a dizer-me: Já vais não é?
Passa o rápido. Enquanto isso penso com saudade noutros tempos e lugares. Não. Hoje não é dia. É tempo de civismo. De luta. De voz. Em coro. União. A mesma mensagem e intenção. Hoje vou dar-me voz porque ainda é tempo. E para além disso é dia da mulher angolana. Que quer dizer bravura, persistência, sabedoria e fé. Na qual faço fé desde que me conheço. Tal como faço fé no dia de hoje. Que não me desiludirá. 
- Paiiiii já chegámos? Quando é que chegamos? 
Finalmente. Entrada para o metro. Stª Apolónia, Terreiro do Paço. Os media preparando-se para a cobertura do grande acontecimento. Ou não. Sigo pela rua Augusta. No meu destino coloco o dedo na campainha. Três toques. O nosso sinal desde sempre. Abre-se a porta. Subo as escadas. Sorrio. Cheguei.

( sábado 2 de Março 2013 )

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