terça-feira, 26 de março de 2013

a minha manhã


Nove e qualquer coisa. Saio de casa. Há pouco chovia por isso é urgente o chapéu.
Na rua não está frio nem chove. Olho adiante enquanto penso que devia morar mais perto do metro. Que canseira! 
Quando já avisto a passagem aérea que vai do Sr. Roubado a Odivelas, passa o metro.
- Merda! Pouca sorte. E eu cheia de pressa...
Quando vier de vez para cá tenho de voltar ao passe. É muito mais prático e económico, penso enquanto tiro o cartão verde que fiz no domingo com algumas viagens. 
O metro chega entretanto, que, apesar de eu estar de férias, a vida continua, o país não pára e é terça-feira. Vai cheio que nem um ovo. Nem um lugar disponível. Agarro-me ao varão enquanto aperto a minha carteira de encontro ao peito não vá o diabo tecê-las e umas mãozinhas  astutas me roubem. O computador na pasta de traçar e nas mãos, dois sacos e o chapéu de chuva. 
Dê lá as voltas que der ando sempre com a casa às costas. É quando assim é que me lembro da minha ex-vizinha, mãe dos índios e mulher daquela criatura mansa  que eu sei lá, tão mansa que quando ela se pôs ao fresco, a criatura não desmanchou o sorriso pateta que exibia, chovesse ou fizesse sol. Quando me avistava ao fim da rua ou se cruzava comigo dizia: Olá vizinha, sempre carregada de sacos. Não sei se era uma cassete que disparava ou  se tinha razão. 
O homem barrigudo de camisola encarnada toca-me na mão que agarra o varão. Áspera e calejosa arranha-me os dedos. Grunhe, que é o termo, uma desculpa e olha para o lado.  A rapariga negra de cabeleira postiça e rosto bonita, assiste e apesar de estar ao telefone, olha-me nos olhos, ergue as sobranceiras e sorri. Saio no Campo Grande abandonando a linha amarela e corro para o metro da linha verde. Corro sempre. Deviam estar mais sincronizados nos horários. Entro na última carruagem. 
De novo me agarro ao varão. Ocorre-me a dança. Pisco o olho ao meu eu mais divertido. Havia de ser bonito se eu endoidecesse e desatasse a despir-me para iniciar a dança do varão. Han, maria clara? Estás mesmo boa ou piraste de vez? 
Apesar da hora ser de ponta, das caras carrancudas, dos jovens ouvindo música através dos fones, alheios ao que se passa à sua volta, apesar das pressas, não estou nem contrariada nem mal humorada. P'ra quê? Começa o corre corre dos pedintes que com latas, garrafas d´agua cortadas ao meio e vazias, vão passando e numa cantilena demais conhecida vão chamando a nossa atenção.  
Na estação dos Anjos entra alguém que quase me leva pelos ares. Senta-se de seguida como que por milagre. Uma mulher ainda jovem levantara-se para que se sentasse. Balançando-se para a frente e para trás, o jovem é olhado por todos os que vão à sua frente. Os movimentos assemelham-se ao que os autistas fazem. Atrás dele entrou um cego que já conheço há dez anos nestas andanças. Pedindo e batendo com a bengala na caixa de madeira, chamando a atenção, é mais isso. O jovem levanta-se e tira umas moedas do bolso das calças. Tenta falar com o cego, mas apenas sai o som não articulando palavras. Todos olham de novo para o jovem. Sai a pessoa que ia ao seu lado. Ele oferece o lugar à mulher que ia no seu. Ela recusa. Eu sento-me. 
Ele olha p'ra mim. à frente dele uma mulher toda empiriquitada olha-o.  Ele mexe-se nervoso. Na estação seguinte levanta-se e muda de lugar. Inicia o baloiçar. Mais uma vez todos os que vão à sua frente o olham. 
Saio na estação do Rossio. Na saída da Praça da Figueira. Junto às escadas o homem de sempre. Alto moreno de barbas. Umas vezes tocando outras quieto. Os cães junto dele. Do outro lado os cobertores e os sacos. No domingo, este homem que agora está calmo como sempre que aqui passo o vejo,  falava inglês  como se não houvesse amanhã. Repetia esquizofrenicamente, funk you, funk you e eu que não costumo estar nem aí apeteceu-me dizer-lhe funk you p'ra ti também, meu. Hás-de cá vir pedir-me uma moeda que te conto um conto, mas ia acompanhada e calei-me.
Não chove em Lisboa. Saio para a rua. À boca do metro uma loja que vende camisas e camisolas, casacos e outras peças. D'um mau gosto que até arrepia. Do interior, música aos berros. Um homem de camisa aos quadrados numa extensão do mau gosto da sua loja, lê o jornal. Indiferente à música e a quem passa.
Escuto a música e sorrio. Africana. Faz sentido o sentido de oportunidade. O mundo é dos espertos. Os africanos passeiam-se entre as praças do Rossio, esta e a da estação dos comboios.  Deve ser um chamariz. Olho de novo. Não bate a bota com a perdigota. Ninguém ali é africano. A música não é conhecida. O que me surpreende. Porque se fosse, Irmãos Verdade, Bonga, Paulo Flores, Tito Paris, fazia sentido. Os portugueses gostam. Mas esta música é daquelas que só quem bebe água do Bengo, senta na esteira com a lavadeira da casa a comer feijão d'óleo de palma, compra doces de jinguba na rua, ou gosta de múcua, cola, gimboa, insulta em kimbundo, é que gosta.. Sente-a porque a tem nas entranhas, nas origens, nas raízes que nascem e crescem dentro e fora de si. Dentro de nós...
Avanço pela praça atravessando-a. As pombas indiferentes à minha passagem correm sem levantarem voo  As gaivotas misturam-se em busca dos pedaços de pão e restos de comida que sempre ali existe. A cor do dia assemelha-se ao cacimbo de Luanda. Inspiro com força. Como se o ar da minha terra atravessasse o Atlântico e chegasse até mim para me desejar bom dia.  Sinto um arrepio na pele. Não, não estou em Luanda...ainda. Isto é Lisboa, numa manhã de primavera. Estou de férias e tenho que ir ali mas volto já...   

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