domingo, 31 de março de 2013

Na sexta-feira santa


Não conduzo. O carro, esse deixei-o ir quando o levaram. Como deixo ir quem de mim se quer afastar. Se vai é porque não me pertence. Se pertencer, de certo volta. Já dizia alguém que inventa pensamentos, ditados e outros ditos e quem sabe mexericos.
Mas voltando à vaca fria, como não conduzo, eis-me aqui deixando-me ser conduzida. 
Viagens atrás de viagens, ele é de autocarro, ele é de comboio, sempre carregada que nem uma burra, p' ra não dizer, como se diz por estas bandas, que nem uma mula, porque fica feio, nunca achei piada à palavra até porque quando algum branco ou negro chamava de mulata a quem nem era branca nem negra a resposta invariavelmente era: Não sou filha de mula, acompanhada de mil palavrões que não a tornavam, à dita, melhor pessoa. E confesso que fiquei traumatizada com essa ofensa e por isso mula é animal que não tem a minha simpatia. 
Burra está de bom tamanho porque é isso que sou, foi isso que fui. Mil vezes burra de acreditar que quem tem uma vez motorista, para sempre motorista.
Hoje em dia e embora me custe admitir olhos nos olhos da minha inércia,, o acomodar baila-me no pensamento e também uma frase batida: Agora já vais tarde, maria clara. Agora tarde piaste, que é mesmo assim. Até porque burro velho não toma ensino e deixá-los aos que gostam e sabem, conduzir e conduzir-se que eu que não conduzo, aposto com o maior entusiasmo na possibilidade de ser conduzida. Porque é a tal coisa, quem não tem cão caça com gato. E dessa espécie percebo eu...
Não há automóvel, há autocarro.
E eis-me aqui apreciando as paisagens verdejantes da lezíria. Alagados os campos com a chuva que é mais que muita, o povo ribatejano habituado que está, não lastima a sua sorte.
Onde não há água há giestas amarelas embelezando os caminhos. Já não há retorno, e pode chover até os cães a beberem de pé, pode chover a potes, pás e picaretas ou a cântaros que a primavera se instalou na natureza e até o calendário nos diz que não tarda nada e a hora muda.
E eis-me aqui a pensar que se acaso conduzisse não poderia apreciar a beleza da natureza. Não sei se sou eu a mentalizar-me, se sou só eu arranjando desculpas para os fantasmas criados e que impediram fortemente essa prática corrente e que só não o foi para mim porque nunca peguei o touro pelos cornos porque lá está, existia um motorista que gostava muito de o ser e nunca me incentivou a sê-lo também.
E eis-me aqui, convertida em viajante nesta sexta-feira santa, dizem que sexta-feira da Paixão de Cristo, e quem o diz é da terra que à época, na igreja, tapava os seus santos com panos roxos até que Jesus ressuscitasse. 
Foram tempos, foram crenças, foi outra terra, outro lugar...
Enfim, dou comigo aqui, pensando que afinal aconteceu-me fechar-se uma porta e abrir-se uma janela do tamanho do mundo para nela me empoleirar e daí poder viajar...ate ao fim do dito mundo que me sorri mais desde que a porta se fechou. Desde que dispensei, a pedido, o motorista que me conduzia e não me incentivava a fazê-lo. 
Na verdade, há males que vêem por bem e me dizem que é um facto não conduzir mas sou conduzida pelas mãos de Deus o que é uma benção e o meu mundo não parou de crescer.
E eis-me aqui, reflectindo porque hoje é sexta-feira santa e estou em viagem...

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