sábado, 13 de outubro de 2012

baloiçando-me na vida


O telefone tocou. Um número fixo começando por 21. Não está gravado e só atendendo sei quem é. São tão poucos os fixos que me ligam!
Por falar em fixo estive toda a manhã no Olival Basto para que o fixo fosse montado mais a net e mais a televisão, naquele pacote que agrada a todos numa troca com outra operadora que me levava os olhos da cara e couro e cabelo, enfim, que me deixava completamente transfigurada quando a conta surgia.
- Qual é o seu nome? perguntou-me o funcionário da PT num português sotaqueado a lembrar a minha querida Arminda, cachupa, cretcheu, mornas, coladeiras e funaná.
- Maria Clara, respondi.
- Roberto Carlos ao seu dispôr, disse sorrindo, mostrando os dentes alvos e certinhos.
- O seu nome é em honra ao cantor? não evitei perguntar.
- É, seguido de gargalhada. Em Cabo Verde gostavam muito de Roberto Carlos e a mãe e a madrinha também.
E mesmo depois do Roberto Carlos ter saído, sem que antes me tivesse contado que tem uma filha adolescente " na Angola " porque a ex é angolana e fugiu levando a filha, que tem casa própria na Amadora e está a pensar ir trabalhar para Angola, deixei-me estar saboreando a minha casa onde já não ia há muito tempo; desde as férias de Setembro.
Aguardava então um pouco para fazer o caminho de volta para Lisboa e enquanto aguardava passeava-me pelo facebook quando o telefone tocou.
- Como é, Maria Clara?
Amiga de infância, daquelas que brincaram connosco de jogar à macaca, minha mãe dá licença, jardim da celeste, atirar farpas feitas de papelinhos e lançadas de elástico do cabelo para os rabos dos que esperavam o machimbombo da Terra Nova ou do Cazenga, mesmo em frente à nossa porta, amiga de cantar as músicas do Roberto Carlos, num que tudo mais vá para o inferno ou o calhambeque, de se mascarar connosco no carnaval, de rezar as orações dos santinhos, de assistir junto à missa das seis nos domingos, em São Paulo, de me levar pela mão para o colégio no meu primeiro dia de aulas, de costurar vestidos de bonecas, de andarmos de baloiço voando alto no alpendre da sua casa debaixo do assanhamento do cão Boby, amiga de fumarmos negritas avulsos na casa de banho do quintal, de enganarmos os baleizeiros com moedas de portugal, de partilhar segredos, de apanhar boleia para irmos para a praia juntas, de inventar batom com nívea e lápis dos olhos, de irmos à drogaria comprar Marlene, perfume avulso, de irmos à matiné do Miramar, amiga de sempre, essa amiga com número de telefone fixo começado por 21 que diz:
- Como é, Maria Clara?
E eu conto como foi e como é.
- Eu já parti este braço.
- Eu lembro-me. Foi no muro. Empoleiraste-te no muro e rodaste agarrada ao ramo da mandioqueira.
- Não, isso foi quando parti a perna. Caí para cima da jante de camião que estava no teu quintal.
- Quando partiste o pé, emenda ela. 
- O braço foi num domingo à tarde. Estava a brincar...e ela interrompe, lembro-me, estávamos a brincar e caíste do muro abaixo para a lata...
- Lembras-te duma torneira que ficava ao pé do muro, que tinha um contador e um caixote por cima? Eu subia por aí e andava em pé em cima do muro...
- Pois, e depois caíste em cima da lata...nós aprontávamos, amiga.
Recuando no tempo até aonde as memórias valem ouro e diamantes, recuando aos meus seis tenros, felizes e saudosos anos, vejo-me empoleirada no muro da frente da casa, não no outro que separava a minha, da casa da minha amiga, não no outro onde à noitinha saída da casa dela amuada, me empoleirei também e ao chamamento da irmã rodei agarrada a um frágil ramo de mandioqueira e caí p'ra cima da jante, ganhando dores, uma ida ao hospital de S. Paulo, ao fundo da avenida e uma bota branca de gesso. Até que era bangosa a bota branca e depois todo o mundo perguntava, o que foi desta vez, Clarita?  
Vejo-me nesse tempo, de traquinices, de maria-rapaz como me chamavam, quase correndo em cima do muro, fazendo equilíbrio, qual ginasta do circo Universal ou Mariano, sorrindo feliz no desafio ao medo. 
Vejo-me desafiando o mundo desde a ponta da loja até à ponta onde começava o passeio da Casa Bastos, junto do portão da minha vizinha. Quaisquer dez metros de glória e de risco que me fortaleciam e faziam livre e feliz. Juntamente com a minha amiga Fatinha. 
No Olival Basto, em dia de montagem do Meo, recuando 52 anos percebo que é uma fortuna o que possuo. As memórias partilhadas com alguém do passado, no presente. A riqueza de uma vida plena de acontecimentos e sentimentos. A cumplicidade da amizade.
Uma fractura no úmero? O que é isso comparado com a herança que trago comigo?
Sorrio feliz e grata...


( homenagem à minha amiga de infância Fátima Matias )



2 comentários:

GM disse...

Pois!
Estou mesmo a ver.
Useira e vezeira.
Continuação das melhoras.
Bj

Maria Clara disse...

Ahahahahahah!
É. Foi braço, foi perna, foi pé, queixo, testa ( esta foi com 3 anos e ainda me lembro como foi, os primeiros agrafos que me puseram foi nesse dia )fora torções de pés, tudo em criança e adolescente, depois segurei-me nas canetas e apesar de cair sempre muito os aleijões não foram dignos de assinalar, e agora isto...
Obrigada GM.
Beijos