Já toda a gente sabe que eu gosto de ditados. Fazem parte da verdade do povo, da confirmação do cotidiano. Da vida, experienciada e passada de uns para outros, virando sabedoria.
Já toda a gente que priva comigo sabe que gosto pouco de estar fechada. Ficar em casa dias e dias não casa comigo. Não ver gente deprime-me. Não falar nem rir, angustia-me.
Não me mexer engorda-me. Não usar o braço e mão esquerda escraviza-me. Não estar de férias mas não fazer nada inutiliza-me.
Não me mexer engorda-me. Não usar o braço e mão esquerda escraviza-me. Não estar de férias mas não fazer nada inutiliza-me.
Não sei estar de baixa. Instala-se em mim um sentimento de culpa inexplicável. A última vez que aconteceu foi há cinco anos por causa da cervical. Também andei a contas com este braço...
Por estas e outras, por tudo isto, sentada no sofá da sala, olhando para a televisão, sinto-me no mato sem cachorro. Atada de mãos e pés. À beira do abismo.
A manhã amanheceu triste e húmida. Chove na travessa, a caminho das escadas que vão ter lá acima, por onde os estrangeiros de máquina ao ombro sobem a fim de conhecerem as vielas, os pátios, o castelo e a tradição.
Chove que Deus a dá. E abre o sol de seguida, secando tudo. Oiço os sons da rua, do ar e do rio através dos carros, das sirenes, do sino da igreja, dos aviões e das gaivotas que chegam. E eu aqui. Como que fechada a sete chaves. Presa na minha incapacidade física para pôr o pé no chinelo e partir na descoberta da cidade a partir daqui, do coração e do seu pulsar.
Sinto-me a morrer na praia.
Procuro não ouvir fantasmas. Sei que a cidade antiga deve ter muitos. Mas é de fora que me chegam vozes demoníacas. Não quero ouvir ninguém que me diz que isto pode levar meses. Porque dizem estas coisas? Para prevenir? Diz que homem prevenido vale por dois. E mulher?
Nem quero ser prevenida e valho o que valho. Uma vezes o meu peso em ouro, outro nem um tostão furado.
Porque me dizem coisas que me assustam e provocam dores no estômago?
Porque não oiço que vai correr tudo bem, que não vou precisar de ser operada e que daqui a pouco já estou a chamar ou a dizer adeus com a mão esquerda sem que me lembre que me estendi ao comprido numa ladeira quase enfiando a cabeça debaixo dum automóvel percebendo tudo desde que o pé resvalou até que senti o braço esquerdo perdido por muito tempo numa pancada seca e para lá de dolorosa no asfalto da rua onde todos os dias passo mais do que uma vez ao dia?
Ontem o telefone ainda me animou. Uma amiga de infância. Um amigo do norte do país que também é angolano.Horas. Mensagens agradáveis.
Hoje a manhã começou chovendo. Passou depois a sol. A tarde chegou calmamente. A noite também.
Da varanda disseram-me:
O Rossio está animado. Os putos estão numa algazarra, nas praxes.
O Rossio está animado. Os putos estão numa algazarra, nas praxes.
Senti-me de novo a morrer na praia.
O mundo lá fora a viver. E eu aqui dentro a embrutecer. Desviando-me de todas as notícias que me causem azia. Procurando programas com que me possa entreter. Ouvindo o doutor Oz falar sobre Alzheimer. Que o caril faz bem, as batatas assadas também e as frutas e legumes coloridos idem. Mas que novidade!
Ficou-me a bater que no Rossio os caloiros estavam a ser praxados. Que havia noite, barulho, putos, Rossio, lá fora.
E fui à rua. E descer a rua, passar na Praça da Figueira, Rua Augusta, voltar ao Rossio e seguir para casa foi subir ao céu. A companhia não podia ser melhor.
Afinal, acabei a noite a ressuscitar e quem diz que sai caro ser feliz não sabe o que diz. Não gastei nada e hoje não podia acabar a noite de melhor forma, Até porque Deus dá o frio conforme o agasalho. Ou é o contrário? Que estava frio estava mas até foi bom sentir o aconchego do casaco. E da noite.
Ah e a quantidade de polícias que havia na rua? Senti-me para além de tudo, protegida.
Ah e a quantidade de polícias que havia na rua? Senti-me para além de tudo, protegida.
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