quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

sobe que sobe, sobe o viaduto

foto tukayana.blogspot

Clara sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. O viaduto...
Todos os dias. De dia e de noite. Já lá vai uma semana.
O viaduto passou a ser o meu estimado e assíduo amigo. De manhã, numa pressa de quem tem de trabalhar para viver, procurando não olhar os automóveis que o descem para não fazer caretas, língua de fora, aviões com os dedos e tudo o que me passa pela cabeça. É que até o doutor penteadinho que era um administrativo numa empresa conhecidíssima desta praça e resolveu estudar, que eu não via há muito me cai na sopinha todas as manhãs e espreita como se nunca tivesse visto uma criatura subir o viaduto cheia de frio, sono e pressa. E por falar neste senhor doutor da mula russa ocorre-me que nunca gostei de gente que depois de ter já a sua vidinha vai para a faculdade, excepto a minha amiga Manuela que já fez o seu curso de sociologia e continua na sua vidinha, sem puxar de galões. Porque é mesmo isso. Um puxar de galões tão mediocre e vazio que entristece. Andam por lá a estudar e voltam cheios de proa e pose, numa de exigirem doutor atrás do nome como se nome fosse doutor qualquer coisa. Numa arrogância dissimulada disfarçada de educação, mas deixando aquele rasto de vaidade que agonia e paradoxalmente a tratar tudo o que mexe, pelo nome, num tu cá tu lá que eu filha de sô santos neste doutor penteadinho, que tinha que levar com ele, prometi que lhe dava uma lição para ficar lá no cantinho dele, xóxó, casota, e caiu-lhe tudo e mais o que não tinha para cair no dia em que me tratou por Clara, como se fosse meu amigo, meu patrão, e eu lhe disse, dona, senhor doutor, dona, que juro, quase me arrependi que até senti pena da criatura porque eu não sou má, tenho é mau feitio e não gosto de gente abusada que julga que a diferença está nos títulos.
Bem, mas o viaduto é que me trata por tu numa intimidade que ganhei neste sobe que sobe, desce que desce, quer de dia quer de noite. De repente, é bom voltar aos velhos hábitos de andar a pé numa marcha lenta ou apressada, de companhia da minha amiga que já voltou da Covilhã.
A cidade é passada a pente fino. Cada rua, viela, ladeira, beco, casas, escritos, abandono. Indigência. Nada nos escapa.
A cidade nunca foi tão vasculhada por nós. Para não nos saturarmos do mesmo percurso. Desenferrujar não só o corpo, mas a língua, está na ordem do dia e de repente vemo-nos de coração na boca, vento na cara, dores nos gémeos, a falar da crise, da maçonaria, do facebook, de sentimentos, princípios, casas de praia, férias, de nós.
Visitamos a pitangueira que a olhos vistos na calada da noite que nem se ouve um cão a ladrar sequer, parece que já não há cães dentro da cidade, está amadurecendo pitangas saborosas e lindas, num regalo para os olhos e um prazer para a boca. E para a alma.
Na velocidade que levamos nesta necessidade de voltar a hábitos saudáveis, o que observamos é o sinistro e incompreensível retrocesso que a cidade foi sofrendo.
Esta cidade é uma terra pasmada. Indiferente.
Atravesso a avenida junto ao rio às 9 horas da noite e tomo de assalto esta cidade que se deixa apanhar. É nossa. Fica nas nossas mãos. Dá um frio na barriga. Uma tristeza na alma. Uma rouquidão na voz de lhe falar e sentir a indiferença que os torrejanos lhe votaram. Dá uma pena tão grande que quase me apetece passar-lhe a mão pelo pêlo e chamá-la um pouco minha, para dela cuidar.
A antiga esplanada da avenida, sim porque quase todas as noites passamos pela dita esplanada remodelada há uns tempos, vai resistindo num braço de ferro que admiro. Resiste também o grupo de gente com ideais, que já resistiu ao tempo e às mudanças de regime, governo. Conheço-os, não só das vénias que me foram sempre fazendo ao longo dos tempos, mas das férias em parque de campismo nos velhos tempos da tenda e da caravana que ficava o ano inteiro fingindo de casa, dos eventos sociais, da cidade, quando ainda todos, vermelhos, laranjas ou rosas, acreditavam que a região ia ganhar mais do que perder e ainda ia fazer ver ao norte ao sul, ao país.
Numa das caminhadas, dois destes homens que envelhecem no corpo e na idéia de que o país tem de mudar, atravessam a rua só para nos cumprimentarem. E dá vontade de rir pensar que se dizia no século passado, que comiam criancinhas ao pequeno almoço.
A cidade está deserta, de velhos e crianças. De homens e mulheres. Nós entregues a nós, nas nossas caminhadas. São 6 a 7 quilómetros duma solidão que nos faz recordar uma terra bem diferente ainda há tão pouco tempo. Tão melhor...
Não sou saudosista. Mas tenho uma profunda tristeza de ver torres novas envelhecer indiferentemente. Não gosto de viver num sítio em que não defenda a sua gente, o seu chão, como se fosse meu. E é isso que faço já há muito tempo. Nada...
R
esta-me mil e um passos diários viaduto acima, viaduto abaixo, entre um candeeiro e outro, 50 passos, e a esperança de que algo mude. Nem que seja para que um dia, possíveis netos possam olhar com carinho para esta região.
Enquanto isso vou subindo e descendo o viaduto quer de dia quer de noite até me cansar. Logo se vê quando!

2 comentários:

nuno medon disse...

olá.. estou contente por regressar e por um texto seu ( estive cama 4 dias, mas estou melhor ). eu se tivesse um curso universitário, também não gostava que me tratassem por Doutor. A apresentação que gostei mais no ensino secundário, foi de um professor que começou por dizer " não me tratem por senhor doutor, senhor professor ou stôr. O meu nome é Norberto e tratem-me por Norberto ou por tu " e assim era tratado, e todos os alunos o tratavam com muito respeito e amizade. beijos e um abraço Maria Clara.

Maria Clara disse...

Olá Nuno.
As suas melhoras. :)