sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

uma noite pela cidade


Uma noite na cidade percorrendo-a a pé pode ser interessante para estudo sociológico, eu que levo a socióloga ao meu lado. Às 8,45 já estou pronta para a caminhada. Agarro uma maçã, o meu jantar, o almoço foi leitão, mais porco que outra coisa, e nem a pele estaladiça me convenceu, nem aos restantes. Para além dum enjoo pedindo água gaseificada do Lidl, água das pedras cá de casa, ainda me impediu de jantar o que não me parece mal tendo em conta que não me faz falta nenhuma.
Quando descia as escadas os meus vizinhos menores, aqueles três da vida airada, que me  lembram eu e todos os tus do meu bairro, corriam dentro de casa como se não houvesse amanhã, batiam portas num traaaaaz seco e estridente, gargalhavam e gritavam o nome uns dos outros. Danielaaaaaaaa, larga-me. Vou dizer a mãaaaaaaae. 
Não me incomodo com a traquinice deles. Recuo no tempo se os vejo brincando na rua , entre o Café da mãe e a nossa porta. São os únicos putos que brincam na rua,  como se esta fosse  casa. Noite fora.
Que saudades eu sinto da minha cidade, da minha rua, das noites estreladas, de mim...
Enquanto como a maçã, desço as escadas.  Não sou apreciadora. Forço-me a gostar porque dizem, faz bem. Gosto das bravo esmolfe e das verdes. No tempo em que brincava na rua até de noite, comia maçãs que chegavam da África do Sul e o pai vendia lá na loja. Também gostava das maçãs do sul, pequenas e ácidas. No mercado de  Peniche vendem-nas. Chamam-lhe maçãs da praia. Ácidas que até se sente nos ouvidos, no céu da boca, nos pulmões, mas eu gosto. Me sabem às do sul, mais sul que este sul.
Paro em frente à passadeira. A Augusta e o filho atravessam-na sorridentes. O miúdo cresceu tanto que acho quando o vi a última vez não tinha mudado a voz nem tinha buço. A Augusta é fixe. Vizinha discreta mas sempre lá, para o que fôr preciso. Mora por baixo de mim e não dou por ela senão quando grita com os putos. Gosto da Augusta, mais do que do marido, que se se cruza comigo nas escadas, rosna,  de olhos no chão. Não sei como é que a Augusta se perdeu por aquela coisa tão mal acabada, mas cada um é pr'o que nasce.
Finalmente, a minha companheira chega. Para iniciarmos a passeata. Quem nos vir nestas andanças e tiver sentido de humor, o que não é p'ra todos, farta-se de rir à nossa custa. Não admira pois somos as primeiras a divertirmo-nos. Entro no carro. Paramos adiante, junto à casa mortuária que está iluminada, e com alguns vivos. E seguramente, um defunto. Tenho a certeza de que não há um cidadão desta cidade que não olhe a mortuária quando lá há luz e não tenha curiosidade para saber quem partiu. Afixam aqui e acoli e como afinal conhecemos ( quase ) toda a gente vamos espreitar o papel afixado no largo da E.P.P. Por acaso conheço. Duma rua onde conheço quase todos os residentes. Onde vivem duas pessoas  em tempos muito vivaças e agora embora vivas fazem-se de mortas, mas isso são outros quinhentos. 
Hoje trocamos as voltas. Fintamos os caminhos. Seguimos, pondo a conversa em dia. Embora não fosse tarde nem estivesse frio, este povo não sai às ruas. Pergunto-me se estarão como estou eu agora, agarrados ao computador, ao facebook e outros. Decidimos descer a rua do incêndio do fim da tarde na casa colonial lindíssima e abandonada, que fora pertença duns colonos que fizeram fortuna em Angola nos anos 50 e 60. Ainda cheirava a queimado. A sirene dos bombeiros tocou muito tempo e o fumo negro nos ares era assustador. Visto isto, descemos a rua direitas ao centro. Pelo caminho fomos a par e passo com um antigo conhecido. É uma criatura da cidade, conhecida pela sua função e por outros motivos também e que toda a vida conduziu sem carta de condução porque é muito cegueta, e nunca foi multado, apanhado e levado em sumário para responder em tribunal, o que não deixa de ser curioso e estranho. Se sempre foi pitosga, agora está pior. E, ou não me conheceu ou não quis conhecer pois nunca se me dirigiu. Porque seria? Constrangimento? Encolho os ombros. Nunca foi flor do meu jardim, mesmo... 
Passamos a rua das lojas sem que víssemos viv'alma. Chegadas ao carro decidimos por outra  passeata. Pelo centro da cidade. Até ao castelo. Como fiscais. Revistando as mudanças. Que as há. Um dia destes estamos na 3ª feira medieval da cidade. Uns dias de beleza, animação e fantasia. Gosto desse evento. Acho que todos gostamos. Não há como não gostar. As obras do hospital velho também vão adiantadas. O edifício, outrora da Misericórdia é bonito e sem aquele muro enorme a protegê-lo, pode ver-se em todo o seu esplendor. 
A caminho de casa demos conta duma enchente excepcional, na esplanada da avenida, junto ao rio. Apenas o grupo da esquerda desta praça costuma assinar o ponto ali. Quer de inverno quer de verão. O grupo mais credível que conheço. Por razões que considero preciosas. Hoje, juntaram-se outros. Para o Sporting. Futebol e política?! Porque não? 
A minha companheira desta noite deixa-me finalmente em casa. Espera que eu entre como sempre. Gosto que esperem que eu dê à chave. Todos sabem da minha velha dificuldade na abertura. Já fiz de tudo. Fingi que não estou nem aí e  nada. Fui de chave em punho direita à fechadura e nada. Fui nervosa, apreensiva, furiosa ou revoltada com a minha falta de jeito e nada. Por isso agora...seja o que Deus quiser. Hoje Deus quis que a porta estivesse aberta.
Uma noite pela cidade, percorrendo-a a pé e também de automóvel pode ser interessante. Se esta o foi? Ah! Se calhar foi.  Uma certeza eu tenho, interessante ou não tenho que ter muitas noites como esta porque não posso deixar de andar. A pé.  

2 comentários:

nuno medon disse...

olá. a sua vida dá um filme. engraçado como repara em todos os pormenores. é alma de escritora. andar faz muito bem. beijos e um bom fim de semana. que a passeata se repita hoje.

Maria Clara disse...

Obrigada Nuno.
Bom fim de semana para si também.