sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

N'ga sakidila


Recebi um telefonema. Não foi um telefonema qualquer. Foi um amigo, que ouvia os relatos de futebol no rádio lá de casa com outros do tamanho dele, do lado de fora da janela de rede, por causa dos mosquitos, nos domingos de descanso, enquanto o sô Santos e os amigos jogavam à sueca na mesa da sala, do lado de dentro da janela de rede mosqueteira, ainda eu não sabia quem era nem o que andava a fazer neste mundo de Deus, de tão candengue eu era.Tardes de calor sufocante e húmido. Tardes de cacimbo gostoso. Tardes na rua do Saber Andar. Tardes de Luanda. Um amigo da Vila Alice, que com outros jogava ao chinquilho debaixo da sombra das mulembas da minha casa. 
E por falar em mulembas me lembrei doutro kamba, noutra época, depois da descolonização, que me levou à Barra do Kuanza e me mostrou a estrada que vai sul a baixo, e me fez dar encontro com as árvores frondosas, de raízes exteriores caindo como se fosse chuva e que dá uns figos minúsculos que eu comia enquanto candengue, vendo o sô Santos e os amigos jogar à sueca ou o meu amigo e os outros jogarem ao chinquilho enquanto me baloiçava com a Sebastiana nos " fios " das mulembas. Mas eu reconheci logo que bati os olhos nelas. 
Isto são mulembeiras, eu disse, de máquina fotográfica na mão, filmando e gravando sem querer. 
Ninguém imagina a coisa boa dentro do peito, na pele, na cabeça, na voz, que a gente sente se  está 33 anos sem ver as árvores da nossa infância feliz e de repente...Isto são mulembeiras! Têm estes fios! Ai que engraçado...aos anos que não via isto! Eu vivi numa casa que tinha mulembeiras...
Recebi um telefonema de um amigo que está ficando kota. Mais de 60 anos. Que me conhece desde quando eu nasci, ali do lado. Na casa do avô.   Que conheço desde que me deram à luz. Que me traz à memória momentos, rotinas, alegrias, vivências que têm como palco a minha casa. O sô Santos, o avô Carvalho, o tio Augusto. A minha mãe. O terreiro onde as mulembas assistiam às brincadeiras de rua que eu, a Berta, a Lisete, a Carminho e a Sebastiana tínhamos, numa liberdade que só aquele tempo, aquele sol, aquele cenário nos podia dar.
Há telefonemas felizes. Que nos provam que não somos números. Ainda que algumas vezes a vida nos queira resumir  e reduzir a zeros. 
Há pessoas que nos ajudam a manter vivas as memórias e que não só vivem nas nossas como as nossas pessoas vivem nas suas memórias.
O que é que eu posso dizer? N'ga sakidila kamba diami.

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