Na minha terra há mulheres que são santas. E há algumas que têm esse nome posto na hora da água benta na cabeça, do sinal da cruz na testa e do choro do candengue assustado com desnecessária violência .
Eu conheci mais do que uma Santa de nome. Na Vila Alice. Não sei porquê que é nome de africana. Será que é mesmo por isso? A religiosidade sempre na vida dos angolanos.
Era menina quando dos fundos da casa das mulembeiras, fugia para o largo. O famoso largo da vila alice das minhas memórias. Passava a fronteira e ficava ali aonde eu era mais eu. Conhecia todos. Como numa pequena sanzala. A Susete, a Lili, o Armindo, o Américo, o Luís, a Maria João, o Kaquito, a Laura, a Lisete...ai a Lisete, irmã do Kaquito e da Laura, filha da Dona Rosa e do sr. Eurico e minha amiga mais antiga, desde que nasci, que vive agora no Barreiro, os filhos do sr. Ulisses, a Ana Maria, o Quinito, a Fernanda, a Nela, a Lena, a Fátima, a Céu, a Ana, Aurora, Delfina, os Cunhas...
Os Cunhas eram filhos da Dona Santa, uma mulata cambuta e roliça que andava sempre com a empregada e afilhada atrás e me disse um dia que eu estava verde e me deixou tão assustada que fui no consultório daquele médico mestiço que ficava na avenida brasil e me dei de caras com uma patologia grave porque me convenci que era hipocondríaca desde aí. Se eu não era lagarto, nem rã, nem louva-deus, nem nada, como é que estava verde? Era doença, só podia e muito má.
Dona Santa, andava sempre na banga. Era do tempo do lenço na cabeça, a apertar no queixo, das unhas grandes e vermelhas e do gingar da anca a andar...
Os Cunhas eram um conjunto, como se dizia naquele tempo. Um conjunto musical. Todos irmãos. Uma vontade enorme de serem diferentes. De sucesso. Tocavam nas farras. Nos casamentos e outros eventos.
Ensaiavam no cair do sol e todo o largo os ouvia. Quase indiferente. Eram da nossa rua. Do nosso largo. Do nosso bairro. Nossos. Um orgulho para todos encarado como dado adquirido. Estavam lá e faziam parte da nossa vida, dia após dia.
Recebi a notícia. O Rui partiu. Uma amiga desse tempo é que me deu. No facebook. Este facebook que nos dá alegrias e tristezas. Surpresas e contrariedades. Indiferenças e novidades. Notícias...
Fiquei a olhar no canto da minha memória fotográfica, a casa de rés de chão e primeiro andar mesmo por trás da minha casa da avenida brasil. Fiquei a olhar a alegria daqueles rostos todos parecidos, filhos da dona Santa.
Fiquei a ouvir os acordes das guitarras e as vozes repetindo letras de músicas ensaiadas noite após noite.
Fiquei a olhar o passado da minha lembrança de nascida e crescida na vila Alice entre a avenida e o Largo Camilo Pessanha. Fiquei a ver o tempo a passar. E me faltou a esperança. Tudo o que tive já não existe, mesmo que ainda não tenha terminado no tempo.
Era preciso repovoar o largo, a minha rua, a Vila Alice, Luanda, com as minhas memórias e a de todas as pessoas desse tempo e dessas vivências, como num filme, para acreditar que o passado não fica lá atrás nas pautas, claves de sol e dós arrancados a uma vocação qualquer, a uma alma qualquer, a uma terra qualquer...
Hoje, respeitosamente, faço um momento de silêncio em memória do Rui. Dos Cunhas...
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