segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

hoje entristeci


Ao domingo de manhã se o telefone toca, há meia dúzia de pessoas que podem ligar. Não mais.E assusto-me. Assusto-me sempre com o telefone se foge  à rotina das minhas pessoas e não  as reconheço no visor. Foi o telefone que me deu as piores notícias que já recebi.

Hoje o telefone tocou. Era o Luís. O amigo da infância linda passada entre as mulembeiras e o largo Camilo Pessanha da Vila Alice. 
" Estive a falar com o Kaquito " disse. O Kaquito é o Eurico Moreira. Outro amigo da mesma infância. Se à casa dele, Luís,  ia com frequência comprar borrachos para a dona Celeste fazer canja para os doentes lá de casa, era eu miúda de 7, 8 anos e à minha casa ele ia por dá cá aquela palha, comer peixe espada frito em óleo de palma, numa caçumbula à cozinha, ouvir os relatos da bola de domingo, ou fazer recados a mãe, dona Maria, à casa do Kaquito eu ia com tanta insistência que mais parecia que vivia lá mesmo. A irmã mais nova deste, a Lisete, era a minha amiga do peito. Sempre juntas, sempre amigas, unha com carne. Desde candengues tão candengues, que foi assim que comecei a andar e a falar. Foi assim ao longos dos anos. Não a vejo há uns anos, poucos, mas mora no meu coração velho e cansado mas cheio de amor pelos meus amigos.
" Estive a falar com o Kaquito " disse o Luís ao telefone.
O Kaquito hoje faz anos. Antes de adormecer dei os parabéns pelo facebook. Ele está em Filadélfia há uns anos depois de ter vivido no Porto muito tempo. A última vez que o vi foi pouco antes de ir para os E.U.A.
" O motivo pelo qual te ligo é triste " - e eu senti o coração bater forte. " A dona Rosa... "
A dona Rosa, a querida e saudosa dona Rosa é a mãe do Kaquito, da Laura, da Lisete e do Dito.
Comadre e vizinha da tia Fernanda anos a fio, mulher do grande amigo do sô Santos, sr. Eurico, um dos poucos amigos a quem o pai tratava por tu e que todas as tardes depois do trabalho ia para a loja beber cerveja e comer camarão ou jinguba e conversar com o pai. Dona Rosa, amiga da mãe e da tia e de todas as mães e tias do largo Camilo Pessanha. Tinha memórias de mim e do meu mau e desajeitado feitio que nem eu lembrava. A última vez que estivemos juntas, na Marinha Grande, num almoço de todos os antigos residentes do largo, fiquei a saber que atravessava o largo, pequenina que eu sei lá, para ir aos ovos a casa da Dona Ester que vivia numa cubata bem no centro do largo, uma mulata de cabelos encaracolados e brancos da idade e de óculos muito graduados, e trazia, tentava trazer, os ovos para casa mas não chegavam inteiros porque ou os partia ou ( que nojo, rsrsrsrs )os abria com os dedos, fazendo um furo e os bebia.
Aiuê, o que me custa imaginar isto! Mas a dona Rosa, que me chamava de Clarita, rindo em gargalhadas sãs e cristalinas contava, a mim e a quem quisesse ouvir:" Clarita, a mãe mandava-te aos ovos e tu fazias um furo e bebias e eu ralhava contigo mas tu não ligavas ". E se ela o afirmou, apesar de muito me custar, eu acreditei. E num segundo, assim como que num flash consegui imaginar e quase me vi atravessando o largo dengosa e altiva a caminho da cubata da Ester e a dona Rosa junto do coradouro da roupa, uma rede retangular talvez dois metros por três com quatro pés, que dividia com a tia Fernanda que na altura era apenas a menina Fernandinha, Nanda para o tio Augusto, observando a minha atitude.
Naquele tempo, no Largo todos os pais,e todas as mães, todos os irmãos, eram pais, mães e irmãos de todos os candengues que ali viviam e ralhavam e puxavam a colatra atrás para umas bofas se precisássemos (?).
A dona Rosa está nas minhas memórias mais antigas. Desde os 3 anos. Ela está lá como os pais, o avô, os tios e os restantes moradores do largo, frequentadores lá de casa e  íntimos das minhas pessoas.
O Kaquito fez anos. Dei-lhe os parabéns. A dona Rosa partiu. E eu dei-lhe os pêsames a seguir.
Nunca me tinha acontecido isto. Há um constrangimento próprio do contraste destes votos. E há uma tristeza profunda. A Dona Rosa partiu...
O meu passado ficou mais pobre. O meu presente também. Eu morava nas suas memórias e ela levou-as.
A Vila Alice perdeu mais uma residente. Angolana e mãe de angolanos.
Hoje entristeci!

1 comentário:

nuno medon disse...

olá. é sempre triste receber notícias dessas pelo telefone, ainda por cima quando é pessoa que conhecemos bem. um abraço. beijos