Sou um ser pertencente a mim. Mas precisei de viver muitos anos, provar a terceiros a minha existência, dar-me aos outros e pertencer-lhes numa posse que chamaram deles para me achar só, dividida, anestesiada, perplexa, insegura e sobrevivente.
Olhar para mim de alto a baixo, tentar perceber o que faria comigo.
Amar-me. Compreender-me e admirar-me.
Arrumar-me nas ideias, em casa, no emprego e na vida. Recuperar-me. Ou talvez adaptar-me e adoptar-me. Chamar-me minha. Pertencer-me...
Ainda não tinha nascido, já a mãe reclamava a posse do feto. Quando chorei a primeira vez no golpe de ar cacimbado, primeiro também, o pai e o avô chamaram-me deles. O tio. Os padrinhos. Os amigos da família. A rua, a cidade.
Fui para a escola e foram as professoras. Os colegas.
Na catequese, os meninos, os padres e madres.
No bairro, os amigos e vizinhos.
Em casa, os irmãos. Os primos.
Seguiu-se a adolescência e seguiu a posse. Os namorados dizendo, minha miúda, minha namorada, minha garina.
No emprego foi, a minha colaboradora, a minha professora, a minha colega.
Mais tarde, a minha subordinada, a minha funcionária.
Como cidadã, fui posse do estado.
Casei e passei a ser; a minha mulher, a minha esposa. Meu amor. Minha querida. És minha.
Uma posse de macho, de machão, de carinho, de amor, de paixão, De afirmação.
Fui nora, cunhada, tia. Pertença duma família que não era a minha.
Foram depois os filhos numa posse tão forte quanto legítima, a posse mais difícil de aliviar e rejeitar.
Quando um filho diz, a minha mãe, ele não nos vê, ele sente-nos nele. E ser deles é inevitável, como natural e óbvio, inexplicável e não precisa de explicação. É visceral. Somos deles e pronto. Somos deles porque sim. E não adianta dizermos que não.
Mas há coisas que se ganham e outras que se perdem. A posse sobre nós também, quando há quem prescinda da posse. Quando somos obrigados a mudar de rumo.
Ou quando damos um, fónix, carago, basta, xiça, penico, cagari cagaró, com mil diabos, todos a mandarem, só eu não mando nada?!
E aí é que são elas. A gente vai abaixo. Quando perde a força, o norte, todas as referências de segurança, porto seguro, o braço direito, o dado como certo.
E deixa a sua cidade, os seus amigos de infância, vizinhos, namorados, emprego.
E depois os pais, avós, tios, partem, os filhos crescem.
O casamento acaba. O emprego reforma-me. E de repente as posses a que me habituei foram perdendo-se, até que sozinha, sem pontos cardeais, sem correntes, âncoras ou escolha, passei a ser dona de mim própria. Apenas. Porque a posse exercida por mim sobre outros, no reverso da medalha, ao longo dos anos, essa também a perdi. Libertei-a. Libertei-me dela. Ou fui obrigada a isso.
Os meus pais, os meus avós, meus tios, minha família. Os meus vizinhos, meus amigos, meus professores, meus alunos, meus namorados, meus patrões, meus chefes, minha terra, meu país, meu povo, meu continente, meu Deus, minha casa, meu carro, meu marido, meus filhos, meu horário, meus colegas, meu emprego.
Assim, sem posse nem penhora, tive de comer o pão que o diabo amassou e como cão a roer ferro passei as passas do algarve, bati na rocha e lixei-me como o mexilhão.
Mas, porque não há mal que não acabe, lentamente, passo a passo e a passo certo, tropeção daqui, cabeçada de acolá, tralho acoli, quase sem dar por isso, fui adquirindo, reconstruindo a posse de mim própria.
Criei uma personalidade, novo bilhete de identidade. Olhar novo, sentir diferente, aptidões, descobertas.
Pus-me em pose. Tirei-me a fotografia. E fiquei bem no retrato. Emoldurei-o. Olho para ele desde que me levanto até que me deito. Sonho. Sonho-me. Vivo. Em mim. Dona da minha vontade, das minhas fraquezas, dos meus anseios, das minhas possibilidades e limitações.
O que penso deste retrato? Ter a posse de nós é uma responsabilidade imensa. Uma fortuna valiosa. Independência e igualdade de direitos, paga-se caro mas não ficamos a dever nada, aos outros. Por isso hoje sou feliz porque sou dona de mim e pertenço-me por inteiro.
Nunca mais serei dona de alguém porque me nego a isso. Nunca mais alguém terá a minha posse porque não sou um ser menor sem eira nem beira, sem norte ou vontade. Antes quero chupar limão e bater com a cabeça nas paredes.
m.c.s.
P.S. poderão perguntar, então e a Pitanga? Não me pertence. Cuido dela, trato-a com todo o carinho e dedicação e nunca lhe disse, vem à dona, mas antes, vem à mãe. ( gargalhada ) Quando quiser ir embora, vai. Mas à cautela, nunca lhe abrirei a porta ou janela para que saia. Pensavam que me apanhavam?
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