Já me tinha dado conta em Torres Novas, que as mulheres da minha idade não andam a pé, pelas ruas da cidade. Não vão às compras, nem comer fora, tão pouco encontrar-se com amigos e saírem à noite. Fazem-no em carro próprio. Ou transporte de companheiro, namorado, de amigos. Ou do que for.
Disso me dei conta quando acordei d' um período menos bom e dei comigo nas ruas da cidade sozinha fazendo ou tentando fazer tudo o que fazia antes, quando tinha transporte à porta. E desse tudo, alguma coisa foi ficando para trás por impossibilidade motora, já se vê.
- Onde anda o mulherio? perguntava-me no início. Intrigada pus-me a pensar. Isto ao fim de um ou dois anos mais.
Depois, aconteceu-me o mesmo no Olival Basto. E até em Lisboa, ao fim de semana. Foi então que mais lúcida, me caiu a ficha.
O mulherio tem razão. Não temos idade para andar aos caídos. Debitando quilómetros como se fossemos atletas de competição.
As mulheres da minha idade já comeram o pão que o diabo amassou. Algumas sobreviveram a guerras; ultrapassaram-nas.
Já fizeram funerais dos pais e até de filhos e irmãos. Já viram ir a enterrar maridos, amigos, colegas, pessoas da sua vida.
Já se enterraram e ressuscitaram todas as vezes que foi preciso ou não foram capazes de o evitar.
As mulheres da minha idade trabalharam muito ao longo da vida. Umas à secretária. Outras de outro jeito.
No lar, cuidando de crias, da casa, das roupas, do jardim, do cão, do gato, do rato da índia, do coelho anão e até do periquito e dos peixes de aquário.
Aos domingos e feriados. De madrugada e ao fim de cada noite e quando todos já estão no sono profundo. No sétimo céu.
As mulheres da minha idade saíram em família, carro cheio, lanches, guardanapos e lenços de papel, garrafas de água e cassetes. Eles a conduzirem.
Um dia conseguiram poupar para um carrinho. Tiraram a carta e sentiram a liberdade de fazer compras sozinhas. Irem à missa, visitar a tia, ao cinema e arriscaram a cidade mais próxima.
E viveram felizes para sempre...
Já me tinha dado conta que as mulheres da minha idade não andam a pé, pelas ruas da cidade. É do estatuto. Que adquiriram.
Eu ando. Sozinha. A cidade e eu. A calçada e eu. Os fins de semana e eu. O entardecer e eu. O metro, autocarro, comboio...e eu.
O que não tem remédio, remediado está.
E por falar nisto tudo, um dia destes, ou melhor, uma noite destas, ainda cedo, se bem que já tivesse escurecido na cidade, dirigi-me para o metro. A pé. De saltos altos e um casaco que dava nas vistas, não por ser folclórico mas porque era um pouco melhorzinho. A maquilhagem também produzida.
Eu, no alto dos meus 1,80 com o acrescento que os saltos me deram.
Até aqui tudo normal, porque também tenho direito. Ia para a estreia da peça que o meu filho criou, coreografou e executou e isso por si só merecia o meu cuidado. Decidi não apanhar um taxi porque as escolhas são o meu dia-a-dia e iria voltar para casa nesse confortável meio de transporte. Porque era cedo, o metro cumpriria a sua função na perfeição. Na Baixa-Chiado sairia para me encontrar com a outra cria e duas amigas, jantaríamos e a pé nos encaminharíamos para o local do evento. Três mulheres novas e eu...
O que eu não previ foi que na rua, no viaduto, à entrada do metro e em plena viagem de metro pejada de gente nova que ia para a noite lisboeta, que acontece sobretudo a partir da quinta-feira, nos bairros típicos como Bairro Alto, Alfama, Santos e nos últimos tempos, Cais do Sodré, gente da nova e da velha, gente com idade para ter juízo, me olhasse com os mais variados olhares de estranheza. Motivados pelo meu aspecto exterior com certeza. E também pela minha idade. Achei que achavam que não batia a bota com a perdigota. E isso fez-me pensar. Vá maria clara, agora pensa...
Onde anda o mulherio? Da minha idade? voltei à vaca fria.
E a resposta, obtive-a, nos olhares em mim postos, numa noite de caminhos pelo meu pé. E não, cómoda e merecidamente como pendura de um carro de família ou ao volante de um automóvel pago com o fruto de muitos anos de trabalho. Na segurança que esta idade me devia dar.
Já me tinha dado conta, sim, que a estrada que é caminho para o meu recomeço, a minha persistência, a minha esperança e é pisada pelos meus pés, calcada pelo meu cansaço, pela minha teimosia, vai deserta.
Caminho sozinha, marchando a passo certo e seguro, mas porque as mulheres da minha idade usufruem do que a vida lhes deu, ou conquistaram e não lhes foi tirado.
A minha vénia para elas.
A minha palavra para as outras. Quando quiserem sair à noite, a pé, de metro, autocarro, comboio, façam-no. Não desistam de viver. Um dia isto muda. E já ninguém repara. Ou haverá condições para as viagens de taxi, de ida e volta.
2 comentários:
Muito bom o texto.
O gozo de ser diferente faz a adrenalina jorrar; ótimo para manter a cabeça capaz.
Obrigada. :)
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