terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

quem nos acode?



Eu juro que sou uma senhora. Embora não me valham de nada as juras, eu faço por isso. Não por jurar à toa. Mas por ser uma senhora bem comportada, tolerante, consciente do meu lugar e valor na sociedade, amiga do seu amigo, caridosa, cumpridora, trabalhadora, boa cidadã, bem educada. 
Tenho os meus defeitos e respondo por isso.
Mas quando oiço um imbecil dizer que se os sem-abrigo podem, nós, os outros, também temos de poder pois não somos diferentes, nem dos gregos ( não percebi a alusão ??? ) nem dos sem-abrigo, ( ainda percebi menos ??? ) a primeira coisa que fiz foi falar alto e sozinha, de mim para mim, quer dizer de mim para ele, que o tinha ali em frente, na televisão. E a palavrita que me saiu assim como que estando, acho está sempre, preparadita na ponta da língua, para saltar, não me torna uma senhora, muito pelo contrário, resvala-me de imediato, num ápice, o pé para o chinelo, mas senhores, como enchi a boca com aquelas três palavrinhas que aprendemos quase que ali quando ainda nem sabemos dizer mãe, pai, ou, dá, e que nos prometem jindungo na língua se alguma vez temos a desfaçatez, a vulgaridade de a pronunciar. 
Eu não queria acreditar. De boca aberta ouvi a criatura e só me ocorreu para além de fazer aviões com os dedos e rezar padres nossos tortos, indignar-me. Ainda tenho direito à indignação. 
Ou não?
Bem sei que levo bordoada se for para a rua indignar-me que segundo eles só se perdem as que caem no chão, mas na minha casa, mando eu. Quer dizer, enquanto cumprir. Pois que se não cumprir lá vêem eles tirar-me o direito ao abrigo, à dignidade. E afinal têm razão, num instante e me torno um sem-abrigo, que tenho que me aguentar à bronca. 
Ah pois é! É vê-los senhores, cada vez mais, cada vez mais unidos em grupos, cada vez menos 
toxicodependentes e cada vez mais criaturas com a minha idade, a nossa idade, a tua idade, a 
idade dos nossos pais, embrulhados em cobertores com os seus poucos e tristes haveres do lado, por exemplo na avenida da Liberdade, ali paredes meias com as lojas de marcas caríssimas, os hotéis onde se alojam turistas estrangeiros. E eles, os tais que vêem para a televisão mandar bitaites que melhor era mergulharem a cara numa lata de porcaria e borrarem-na toda, eles que nada fazem por estes infelizes que não têm eira nem beira senão o beiral dos telhados, as portas de entrada, os vãos de escada, e os alimentos que os voluntários todas as noites distribuem para que tenham um mínimo abaixo do decente mas que os deixa permanecerem neste mundo, numa morte adiada, eles, os senhores engravatados referem-nos como se estivessem a fazer uma grande comparação, uma lógica e legal comparação.
E nós? Os tais outros que não somos mais que os gregos e os sem-abrigo, nós, aqueles que lutam para não chegarem a ser sem-abrigo, aqueles que ajudam os sem-abrigo, nós aqueles que ao contrário dos sem-abrigo, porque ainda temos a felicidade de ter a ilusão de possuirmos algo de nosso, diariamente somos roubados, diariamente nos são retirados direitos, diariamente nos são aplicados deveres acima das nossas possibilidades?
Nós, aqueles que viram reduzidos 300 a 400 euros mensais nos seus ordenados e aumentados 
impostos, transportes, propinas, gastos com a saúde, Imis, alimentação, luz, gás, água? 
São esses , nós, a quem a imbecil criatura se referiu, que temos de nos aguentar à bronca?
Afinal o país pretende ser um sem abrigo na Europa? Afinal os senhores deste país pretendem 
reduzir o seu povo apenas a sem-abrigo? E eles o que serão? Os voluntários que nos oferecerão um prato de comida com 605 forte? Judas, como na última ceia de Cristo?
É que diariamente põem termo à vida, portugueses, por causa destes senhores. 
É que diariamente portugueses perdem as suas casas, os seus veículos,  penhorados e vendidos que são, por incumprimento das prestações.
É que diariamente os portugueses perdem os seus postos de trabalho. 
É que o país está com fome. O país está pelos cabelos. De rastos. Nas últimas. Enquanto uns e 
outros continuam as suas vidinhas burguesas como se nada estivesse a acontecer.
Pois é. Ainda tenho direito à indignação. E como não estou vinculada a partido algum, não tenho cargos políticos, já tenho a idade que tenho, já comi o pão que o diabo amassou e já atravessei mar, dou-me ao luxo de dizer umas quantas e são a voz de muitas vozes que oiço diariamente porque ainda não estou surda.
E remato com umas palavrinhas que me andam sempre a bailar nos últimos tempos.
Grandes f.d.p. Que putice pegada!
Quem nos acode? Afinal não há ninguém que olhe por nós?

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