sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

quantos passos?



Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez...
Conto, a cada passo, a cada degrau, a cada lance de escadas.
Chego à rua. Distraio-me. É sempre assim. Quando me proponho fazer algo que escapa à rotina, distraio-me. Mas se é rotina distraio-me também. A vida é uma distracção. E de distracção em distracção sorrio-me num sorriso alargado pelo bâton rosa forte com que pintei os lábios. E chega-me o aroma de perfume que coloquei. Aquele, o tal, o que me lembra lugares, momentos felizes, pessoas para sempre, mãos tocando céus com as pontas dos dedos. E toca-me e desperta-me os pensamentos, a chuva miúda que escolheu a hora da minha saída para me lembrar e nem o impermeável e as botas altas, o cachecol e o chapéu de chuva impedem que me molhe. 
Um, dois, três... recomeço. Quando passo com passos apressados e contados o lugar onde escorreguei, caí e me adoentei por alguns meses no tempo passado há pouco, avisto ao longe uma gabardine esverdeada, desbotada, velha e cansada que traz de reboque o João S, velho conhecido d'um tempo que pertenceu ao século anterior. Chegado d'uma terra que me pertence. Da época da liamba fumada em charros e trazida de lá, do vício de cravar cada cigarro fumado e a esfumaçar, das longas estórias do mato e da tropa, quem sabe verdadeiras, quem sabe inventadas e deliradas. 
Pára. Nunca me cumprimenta. Inicia a conversa como se já tivesse achado o fio à meada e começasse a tecer. 
- Sabes o que me preocupa? Que um dia nos resignemos. E não passemos deste rua abaixo rua acima, indiferentes. E depois estamos feitos, ninguém nos ouve e ficamos a falar sozinhos.
- Deixa lá João. Disse eu um pouco indiferente à sua conversa. Vale mais falarmos sozinhos do que não termos quem nos oiça.
- Estás muito espirituosa, logo pela manhã.
Ouvi, sorri e continuei o meu compassado contar. 
Um, dois, três...
Sem me distrair, cheguei ao viaduto. Descia o dr. F. F. S, de automóvel. Ao contrário do fim de tarde em que tira a gravata, calça as sapatilhas e conta dois mil e setecentos passos pelo menos, numa tentativa um tanto inquietante e ansiosa de converter em energia os açúcares em excesso que análises lhe ditaram a sina. Por ele, por causa dos seus açúcares, pela caminhada apressada em tão preciso número de passos aconselhados por alguém especializado é que hoje conto os passos que distam de casa ao local onde entrarei em automóvel de colega minha que diariamente me transporta numa generosidade que me deixa grata. 
Um, dois, três...pergunto-me se darei esses passos contados e recontados. Distraio-me com as árvores gigantes e tombadas à beira do rio desde o temporal que vivemos há umas semanas atrás. E com o rio que corre veloz e alargado de margens pouco cuidadas.
Oiço uma buzina. Paro de contar. Há uma absurda vontade de não contar até três e mais absurdamente, espetar o dedo médio para a frente e gritar para os três rapazes não menos absurdos " monangambêeeee " mergulhando no passado sem contudo sair do presente. O que fará homens cheirando a fraldas buzinarem a uma mulher da minha idade? Estar de costas com certeza. E pela figura, pelos cabelos compridos, convencê-los que estou em tempo de ser incomodada. 
Com mil diabos! Distraí-me de novo e afinal não sei se já andei mil e cem ou mil e duzentos passos desde casa. 
Um, dois, três...no cimo do viaduto viro à direita. Do bairro de S. Domingos surge a Lainha, que não me buzina, mas me diz adeus com toda a energia que se consegue pela manhã ainda que não haja açúcar a mais para combater. Brinda-me com o melhor sorriso que sabe fazer. Que faz ao longo dos anos que nos conhecemos. é mulher de um amigo da mesma terra que eu e isso faz da sua mulher pessoa muito mais querida e amiga. 
Faltam-me poucos metros para chegar à primeira paragem do meu destino diário. Em passos talvez sejam trezentos e muitos.
Não me posso distrair para que leve a bom porto o meu propósito.
Um, dois, três...
Abro o portão e paro de contar. Contei mil e setecentos passos mais coisa menos coisa. 
O dr. F.F.S. teria de descer o viaduto e voltar a minha casa para perfazer o número que lhe dá o aval para uma vida mais saudável. E eu? Será saudável contar os passos que dou? 
Contar não direi mas já saber o terreno que piso...


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