quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

memórias




Nasci na cidade. Em África.
Com cultura portuguesa mas uma cidade africana. Nos seus contrastes.Sabores, cores, linguajar, hábitos, gentes.
Foi importante o crescimento ali. Foi igualmente importante os pais serem portugueses. Nascidos na " Metrópole ". Um numa aldeia da Beira Alta, outro, numa de Trás-os-Montes.
Não sabendo, até cá chegar, o que era uma aldeia, sô Santos decalcou-as a papel vegetal na minha romântica forma de olhar as coisas, de as sentir e de as desejar viver.
Nesta minha já longa vida, Vivi apenas um mês numa aldeia. A do sô Santos. Num lugar tão longínquo que agora é que vem ao caso dizer que, onde o Judas perdeu as botas.
Desse tempo ficaram mágoas que vou esquecendo. Lágrimas que secaram. Ficou a aldeia. A memória.
Na época desvaneceu-se a idéia romântica apesar de ser uma aldeia de casinhas em pedra, da igreja à entrada,tal como a escola, da capela bem no centro, do largo do Cruzeiro, dos palheiros, dos muros em pedra negra, da venda, da casa dos grandes senhores de brasão, com o dito encrestado na pedra, dos miúdos brincando pelos lameiros, do balir dos rebanhos,do eco da serra, das vinhas ao fim das tardes sopradas pelo vento, do sol a pique em Agosto, da água da fonte, das amoras 
silvestres, dos grilos e dos pirilampos nas noites quentes, do céu estreladíssimo. Do silêncio. 
Da voz de Deus...
Desvaneceu-se porque não era o tempo certo. Não estava no tempo certo.
Desvaneceu-se porque era urgente chorar. Fazer o luto da dor de ter deixado, quem sabe, a minha cidade, para sempre. A cidade dos contrates. Africana, apesar de ser talhada ao jeito dos portugueses.
Apesar da minha realidade completamente afastada da idéia romântica dos montes e serras cobertos de estevas e giestas. De oliveiras e pinheiros e pasto. Apesar da ordenha doleite. Da coalhada. 
Dos queijos feitos com saber e arte, na mistura de cabra e ovelha, dos chouriços, salpicões e alheiras secando à lareira. Apesar das procissões. Das festas de verão em honra do santo padroeiro, da música pimba e das recusas aos convites para dançar. Apesar dos serões e das estórias de raposas e lobos famintos. E do sobrenatural...
Apesar de tudo resisti. Apenas um mês que hoje me parece ter passado num ápice e que na época custou uma eternidade.
Trouxe para o centro do país uma realidade que não queria para mim e esqueci-a de seguida. Mas as estórias que o pai contava quando estávamos na minha cidade, essas ficaram para sempre e reconheci-as nos olhos, nas mãos, na voz, na postura daquele povo que vivia para lá do Marão.
Trouxe a minha realidade e acho que me prometi nunca viver numa aldeia. Rodeada de montes e serras. Afogando-me. Aprisionando-me, limitando-me. 
Viver numa aldeia sem quês nem porquês...
Passaram quase quatro décadas. Ontem passei o dia numa aldeia do Ribatejo. Abraçada pela serra. 
Debaixo de um tecto maravilhosamente azul e dum sol que brilhou especialmente para mim que o recebi de braços abertos. De oliveiras, figueiras e ciprestes. Montes e lameiros. Torres de igrejas ao longe. Chaminés deitando fumo. Cheiro a lenha. Cães, gatos, ovelhas, pombos e codornizes, cabras e galinhas. Alfaces, couves, nabos, coentros e beterrabas. Limoeiros, laranjeiras, amendoeiras, pitangueiras e cana d'açúcar. Flores e trepadeiras. Tanque com peixinhos vermelhos. Adega. Telheiros. Cheiro a pão a fazer-se no forno a lenha. O cheiro da aldeia aguçando os sentidos. Despertando-me o romantismo. Romanticamente... 
É tão simples estar à distância da liberdade de aceitar o tempo e o lugar e vivê-lo!
O sábado a tocar-me os sentidos. A aldeia a tocar-me a emoção. A família a tocar-me a alma!
É tão fácil ser feliz!

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