Eu era uma miúda. Perdida numa vila pacata do Ribatejo. Com poucas tradições. E mais preconceitos. Uma sociedade desconfiada e pouco hospitaleira, mesmo se os residentes não o reconheçam. Ainda hoje.
Eu era uma miúda. Acabada de chegar dum lugar com muitas tradições e menos preconceitos. Ingénua, sofrida e sonhadora...
Disseram-me que era feriado municipal. E era costume irem para o campo apanhar a espiga. Não fazia a menor ideia do que isso era e do que representava. Convidaram-me a ir. Que íamos em grupo. E que o farnel, merenda ou o que quiserem chamar, tudo nomes estranhos no meu dicionário, seria por conta de alguém. Não minha.
Na época não sabia fazer farnéis. O mais próximo que estava de algo parecido, eram sandes, um bolo ou outro e rissóis de camarão que a dona Arminda me ensinara, numa paciência de Jó digna de apreço.
E assim, sem saber ler nem escrever, cozinhar ou colher ramos de espiga, fosse lá o que isso fosse, vejo-me a caminho duma quinta não muito longe do centro da vila, mas já fora dos seus limites. Era a quinta do Visconde. Que abria os seus portões à população naquele dia de feriado.
Nunca entrara numa quinta. E mal sabia eu que mais tarde, não muitos anos depois era um entrar por sair na quinta do Marquês, a caminho do Carreiro da Areia, para notificar a dona, que era uma senhora inglesa, viúva do inventor da penicilina e que curiosamente o seu novo marido era tão simpático que percorria comigo as imediações do palácio explicando-me cada pormenor da arquitectura, azulejos, árvores e flores como um verdadeiro anfitrião. Como se eu fosse ali a convite e para o lazer. E gostava tanto da minha princesinha que ao ver-me de barrigão na segunda gravidez se insinuou para padrinho da minha cria se
acaso fosse outra menina, adiantando o nome de Cecília como escolhido. E eu já se vê, sim sim, compadre, é que está-se mesmo a ver que filho meu vai ter como padrinho uma exigente criatura de nome Ramada Curto, actual marido da senhora inglesa que andava em litígio com os empregados e tinha processos de trabalho uns atrás dos outros e se recusava ir à casa da justiça, fazendo-me gastar dinheiro em gasolina e pior do que isso dispunha do meu tempo fora do horário do trabalho como se fosse sua empregada.
De forma que em dia de espiga, a minha primeira espiga, a minha frequência a quintas, quintinhas e até quintais da região, era nenhuma.
Mas gostei. Não me deslumbrei porque nunca fico como um burro a olhar para um palácio. Não tenho feitio para animal de quatro patas com palas nos olhos e apesar de ser uma miúda, vinha de longe e até cá chegar fui vendo alguma coisa digna de espanto.
Uma quinta é uma quinta. E estas quintas eram verdadeiros palacetes cheios de rocócós, não tivessem elas pertencido a condes e viscondes e marqueses também. Com capela, piscina, adega, lagar, pérgolas, alpendres, varandas e varandins, pátios, cocheiras. Um sem fim de divisões, uma área imensa, um mundo, outra dimensão. Outras vidas...
Alguém levou mantas que se estenderam no chão , junto ao rio que confronta com a quinta. Apareceram os acepipes à altura de viscondes, condes e condessas. Quem comigo ia, conhecia outras pessoas que estendiam as mantas aqui e acolá. Cumprimentavam-se. Eu não conhecia ninguém . Vivia na vila desde Setembro. Estávamos no mês de Maio. As poucas pessoas que conhecia não eram com certeza habituês de apanha da espiga e tão pouco de estenderem a manta e comerem pasteis de bacalhau num convívio salutar com as formigas, moscas e abelhas que por ali se passeavam.
Depois do almoço notou-se um frenesim anormal. Chegara a altura do conjunto musical tocar e cantar para assim quem quisesse, dar ao pé.
Já algumas vezes tinha visto alguns dos elementos do grupo, no Viela, café da vila frequentado por muita gente da minha idade. Dizia-se que se fumava umas ganzas e que o sr. Mário, dono do café fazia de conta. Apesar de ter chegado há pouco tempo da terra da liamba não reconhecia o cheiro. Havia quem dissesse que o café empestava a erva. Eu nunca dei por tal. O espaço que até era grande, ficava à cunha sem um lugar vago para nos sentarmos. Passava boa música. Estávamos na época dos Pink Floyd. E em coro, cantava-se com a alegria dos vinte anos. Afinal o conceito do café Viela, do sr. Mário era o de pub a atirar para karaoke.
Eram os primeiros rostos conhecidos que ali encontrava. Gostei de os ouvir. Estava habituada a ouvir os Cunhas, meus vizinhos, os Gansos, os Jovens, os Black Stars e outros e em nada estes lhes ficavam atrás.
Vieram pedir-me para dançar. Recusei. Nunca gostei que desconhecidos me tocassem nem mesma a dançar. Esta coisa da pele tem que se lhe diga e não passou, como passaram os anos de vida.
Dizer que foi um dia perfeito não pude dizê-lo. Ou inesquecível. Mas foi para sempre recordado. Pela surpresa. Pela tradição.
Pelo convívio simples. E mais, por motivos, que não sei explicar. E além disso levei um raminho da espiga para casa pela primeira vez, iniciando a tradição.
Já apanhei muitas espigas. Algumas no campo. Outras sabe Deus aonde.
A cada ano me enterneço quando o dia chega. Por este feriado no Ribatejo. E me ter sido dada a oportunidade de fazer o que me apetecesse. Até de comprar o ramo da espiga à porta d' um qualquer centro comercial de Lisboa, Cascais ou junto ao palácio da Vila, em Sintra.
( quinta-feira passada foi dia de espiga )
Eu era uma miúda. Acabada de chegar dum lugar com muitas tradições e menos preconceitos. Ingénua, sofrida e sonhadora...
Disseram-me que era feriado municipal. E era costume irem para o campo apanhar a espiga. Não fazia a menor ideia do que isso era e do que representava. Convidaram-me a ir. Que íamos em grupo. E que o farnel, merenda ou o que quiserem chamar, tudo nomes estranhos no meu dicionário, seria por conta de alguém. Não minha.
Na época não sabia fazer farnéis. O mais próximo que estava de algo parecido, eram sandes, um bolo ou outro e rissóis de camarão que a dona Arminda me ensinara, numa paciência de Jó digna de apreço.
E assim, sem saber ler nem escrever, cozinhar ou colher ramos de espiga, fosse lá o que isso fosse, vejo-me a caminho duma quinta não muito longe do centro da vila, mas já fora dos seus limites. Era a quinta do Visconde. Que abria os seus portões à população naquele dia de feriado.
Nunca entrara numa quinta. E mal sabia eu que mais tarde, não muitos anos depois era um entrar por sair na quinta do Marquês, a caminho do Carreiro da Areia, para notificar a dona, que era uma senhora inglesa, viúva do inventor da penicilina e que curiosamente o seu novo marido era tão simpático que percorria comigo as imediações do palácio explicando-me cada pormenor da arquitectura, azulejos, árvores e flores como um verdadeiro anfitrião. Como se eu fosse ali a convite e para o lazer. E gostava tanto da minha princesinha que ao ver-me de barrigão na segunda gravidez se insinuou para padrinho da minha cria se
acaso fosse outra menina, adiantando o nome de Cecília como escolhido. E eu já se vê, sim sim, compadre, é que está-se mesmo a ver que filho meu vai ter como padrinho uma exigente criatura de nome Ramada Curto, actual marido da senhora inglesa que andava em litígio com os empregados e tinha processos de trabalho uns atrás dos outros e se recusava ir à casa da justiça, fazendo-me gastar dinheiro em gasolina e pior do que isso dispunha do meu tempo fora do horário do trabalho como se fosse sua empregada.
De forma que em dia de espiga, a minha primeira espiga, a minha frequência a quintas, quintinhas e até quintais da região, era nenhuma.
Mas gostei. Não me deslumbrei porque nunca fico como um burro a olhar para um palácio. Não tenho feitio para animal de quatro patas com palas nos olhos e apesar de ser uma miúda, vinha de longe e até cá chegar fui vendo alguma coisa digna de espanto.
Uma quinta é uma quinta. E estas quintas eram verdadeiros palacetes cheios de rocócós, não tivessem elas pertencido a condes e viscondes e marqueses também. Com capela, piscina, adega, lagar, pérgolas, alpendres, varandas e varandins, pátios, cocheiras. Um sem fim de divisões, uma área imensa, um mundo, outra dimensão. Outras vidas...
Alguém levou mantas que se estenderam no chão , junto ao rio que confronta com a quinta. Apareceram os acepipes à altura de viscondes, condes e condessas. Quem comigo ia, conhecia outras pessoas que estendiam as mantas aqui e acolá. Cumprimentavam-se. Eu não conhecia ninguém . Vivia na vila desde Setembro. Estávamos no mês de Maio. As poucas pessoas que conhecia não eram com certeza habituês de apanha da espiga e tão pouco de estenderem a manta e comerem pasteis de bacalhau num convívio salutar com as formigas, moscas e abelhas que por ali se passeavam.
Depois do almoço notou-se um frenesim anormal. Chegara a altura do conjunto musical tocar e cantar para assim quem quisesse, dar ao pé.
Já algumas vezes tinha visto alguns dos elementos do grupo, no Viela, café da vila frequentado por muita gente da minha idade. Dizia-se que se fumava umas ganzas e que o sr. Mário, dono do café fazia de conta. Apesar de ter chegado há pouco tempo da terra da liamba não reconhecia o cheiro. Havia quem dissesse que o café empestava a erva. Eu nunca dei por tal. O espaço que até era grande, ficava à cunha sem um lugar vago para nos sentarmos. Passava boa música. Estávamos na época dos Pink Floyd. E em coro, cantava-se com a alegria dos vinte anos. Afinal o conceito do café Viela, do sr. Mário era o de pub a atirar para karaoke.
Eram os primeiros rostos conhecidos que ali encontrava. Gostei de os ouvir. Estava habituada a ouvir os Cunhas, meus vizinhos, os Gansos, os Jovens, os Black Stars e outros e em nada estes lhes ficavam atrás.
Vieram pedir-me para dançar. Recusei. Nunca gostei que desconhecidos me tocassem nem mesma a dançar. Esta coisa da pele tem que se lhe diga e não passou, como passaram os anos de vida.
Dizer que foi um dia perfeito não pude dizê-lo. Ou inesquecível. Mas foi para sempre recordado. Pela surpresa. Pela tradição.
Pelo convívio simples. E mais, por motivos, que não sei explicar. E além disso levei um raminho da espiga para casa pela primeira vez, iniciando a tradição.
Já apanhei muitas espigas. Algumas no campo. Outras sabe Deus aonde.
A cada ano me enterneço quando o dia chega. Por este feriado no Ribatejo. E me ter sido dada a oportunidade de fazer o que me apetecesse. Até de comprar o ramo da espiga à porta d' um qualquer centro comercial de Lisboa, Cascais ou junto ao palácio da Vila, em Sintra.
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